Olhava os vários canteiros desgostoso. Era belo, sem dúvida, o resultado do labor de tantos anos; havia exemplares magníficos, mas desde há muito que ao suceder das primaveras não correspondia a surpresa e a alegria do eclodir. Ao longo dos anos, apurou em cada um dos exemplares a perfeição da forma, o elaborado do matiz, a subtileza do aroma; mas depois, foi repetição somente o que se lhe pintou na insaciável retina da alma.
Era o seu ritual quotidiano: sentava-se na soleira e contemplava as plantas no jardim. A vigília povoada de fantasiosos sonhos de quimérica renascença, induzira-lhe um estado de alheamento tal, que, sem consciência dos próprios actos, foi sentar-se, naquele amanhecer, junto ao portão exterior do seu jardim; mesmo defronte de onde se acende o alvorecer. Apercebido do lapso ergueu-se, confuso, no intuito de restaurar a cabal observância do ritual. Porém, o primeiro esplendor do sol foi poisar no recanto esconso de um canteiro. Notou então, ao ver daquela perspectiva inabitual, a presença de uma forma desconhecida, um aroma ainda ténue, uma cor pálida de matiz indefinido. Estatizou-se inebriado na contemplação da visão nova. Temeu o movimento, receoso de se lhe acabar o sonho. Mudou a postura lentamente; mas a visão persistiu. Exultou. Correu a buscar a sua tesoura de poda, e, com ânimo novo, aparou as plantas vividas. Conservou-lhes só as flores mais perfeitas, racionou-lhes as réplicas, para deixar espaço às formas novas com que renascia a utopia.
In Histórias de proveito moral - Severino
1 comentário:
Bela imagem da persistente, delicada e dedicada arte de jardinar os sonhos, que nos férteis espíritos florescem.
Enviar um comentário