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Ser lisboeta é vestir a calçada de negro negrume, amar as ruas de Lisboa como quem ama a Morte, acreditar nelas como em profecias impossíveis, saboreando o cheiro das horas perenes.
Os turistas, os mendigos e os outros que correm, num reboliço necessário à vida: a cidade vai vivendo, julgando-se viva, numa ilusão de liberdade.
Caminho para tudo pisando o chão que não me leva a lado algum, e nas matutinas manhãs como esta, quando as ruas ainda se espreguiçam sonolentas entre os prédios, Lisboa faz-me lembrar uma morgue cheia de corpos a chegar.
As minhas mãos são janelas abertas por onde a minha alma vai espreitando timidamente. O vento é um espectro de épicos cantos, que perdido me abraça.
Sorrio aos mendigos, mas não os sinto porque os sou e sendo, vejo apenas os que correm à minha volta sem ver.
Lisboa dos palcos alegres e tristes, cantando melancolicamente mais uma madrugada de saudade, és o meu pátio palco de cantigas de infância campo e cidade-cidade, a minha nudez de moça, transbordante de beatas por apagar.
Percorrendo-te, a minha sombra lembra-me sempre que existo e a minha existência em carne de pés, movimento, lembra-a sempre que não quer ser lembrada.
Entrego-te os meus dedos persianas, de janelas mãos em prédios altivos de rotos, entrego-tos, entrego-tos, para que os mergulhes na terra, calçada poluída, tornando-se raízes de uma possível árvore de mim, se me for justo dizê-lo, egoísmo-flor, de dizer ser-me de mim própria.
Lisboa, és o Corvo que observa as gentes do alto das estátuas, que as protege nas suas asas, aguardando o pulsar da noite.
3 comentários:
Há algo de fundamente pessoano neste deambular vagabundo pelas ruas de Lisboa, com os pormenores de uma atenção mórbida ao negrume esconso de vielas, pátios e becos, com o manto da noite sobre a luminosidade eterna do Tejo.
Tu já és uma escritora, com uma maturidade que tantos só alcançam a meio da vida - e de um tipo peculiar, que persiste em voltar, por ciclos de treva e nevoeiro, à luz oceânica da Cultura Portuguesa.
Escreveu um dia Nietzsche que se recompensa pouco um mestre quando se permanece eternamente discípulo. Não poderia o intempestivo filósofo estar mais certo!
Beijinhos, Sally the Kid.
Ia dizer quase o mesmo quando li a mensagem de Klatuu o embuçado. Este belíssimo texto atirou-me de regresso para o Livro do Desassossego. Mas mais importante do que isso, é que nele desponta uma Lisboa que habitualmente não é cantada, a do horror, do sangue, da tortura, de uma tristeza mórbida. Talvez a luminosidade da cidade nos cegue para esse lado da sua história, obscuro e terrível.
Estamos em locais diferentes do país e, no entanto, a tua visão de Lisboa assemelha-se tanto à minha do Porto...
Serão as cidades...ou seremos nós?
Um beijo*
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