Ao Renato e ao Klatuu, novamente...
1. No fundo, entender o que será o império de que Portugal pode aspirar ser a proposta - de que nos vale a pena aspirar a ser palavra de início - é entender a diferença entre um espaço definido pelo uso da língua portuguesa e um corpo constituído como uma língua portuguesa.
2. Uma língua é um sistema de comunicação, e por isso uma conversa é simultaneamente comunicação de diferenças e enriquecimento de identidade própria. Não pressupõe o conhecimento recíproco dos falantes: ele gera-se no seu uso e pelo seu uso. Não anula as diferenças; mas a enunciação da diferença gera a compreensão que a ilumina. Não é apropriável por ninguém, mas apropriada para todos. A língua é uma hierarquia sem dominação, uma verdade sem ciúme, uma beleza sem artifício: no mundo da linguagem, que é o da irresistível elevação das coisas ao poema, somos desde sempre senhores entre pares. Porque a sua riqueza não sabe excluir, admite o paradoxo maior que é o da aristocracia de iguais. A língua não cala o estrangeiro: tradu-lo. E ao traduzi-lo convida-o. Na língua, o silêncio também tem lugar.
3. A diferença entre nação e império - se preferirem, a diferença entre o nacionalismo e projecto imperial português - é a diferença que vai entre afirmar que tudo o que seja dito em português é valioso e bom, e afirmar que tudo o que é valioso e bom pode ser dito em português. A nação não pode traduzir, porque é um espaço e não uma língua: as suas fronteiras são fechadas à importação de mercadorias e à importação de conceitos, sob pena de dissolução. Já o império não pode deixar de traduzir, porque sendo um corpo linguístico e não um espaço não tem fechadas as suas fronteiras cognitivas.
4. A inconsciência desta distinção perturbou a análise de quase todos os intelectuais do séc. XIX e inícios do séc. XX (notabilissima por isso a excepção de Pessoa), isto é, os intelectuais que viveram o apogeu dos nacionalismos, e que confundiam império com as falsíssimas caricaturas dos neo-impérios francês e prussiano: atribuíram à vitalidade nacional a capacidade de integrar, superando-as, as novidades e as transformações estrangeiras, quando na verdade essa integração correspondeu sempre - exemplarmente no período português das Descobertas - a uma fase em que a nação pariu um império como um espaço bárbaro pode parir uma língua.
5. Agora, passado o tempo das nações fechadas por força da irresistível transformação mundial a que chamamos globalização, o risco já não é o de confundir nação com império, mas o império com a neutralização dos mundos; isto é, o de não perceber não só que a globalização não é indutora mas o obstáculo maior ao império, mas também que o império é a única forma de devolver identidade (e, por isso, diferença) aos seres humanos globalizados, rebaixados a consumidores ou, no melhor caso, a computantropos. E que por isso o império - e as cumplicidades locais que o constituem - são a forma superior de resistência à ilimitada voracidade dos mercados.
6. Ao contrário da nação, o império não está encarcerado no seu espaço físico e no seu tempo histórico, mas estrutura o mundo no seu próprio espaço-tempo complexo: a língua e o império são sempre uma plataforma entre mundos. E como a mesma língua admite diferentes discursos, o império admite diversas realidades locais: culturas tradicionais e tribos pós-urbanas, crenças espirituais e hábitos de vida. Todo o império é heterogéneo e heterónimo.
7. Assim, à semelhança da língua há-de ser o império ou não vale a pena falar. Ele forja-se em nós, na nossa relação com o mundo-que-somos, com os mundos-diversos que as coisas nos dão. Não brota de um programa político, mas de uma linguagem de programação. Não depende da vontade de poder, mas da verdade a exprimir. Não é reaccionário nem futurista, porque passado e futuro são modos de enunciação. Há-de ser um mundo dito, e não um mundo ditado.
5 comentários:
Sem tempo para um verdadeiro comentário, felicito-o pela excelente reflexão, com a qual estou inteiramente de acordo. A única questão é que aquilo que designa como "império" é hoje inevitavelmente mal entendido. Falta uma pedagogia imperial, para a qual o Casimiro tem decerto muito a contribuir.
Num outro e maior sentido, pergunto se aquilo que designa como "império" e adverte na língua portuguesa não será a própria tessitura una, múltipla e dinâmica dessa contínua metamorfose a que se pode chamar o real, em toda a gama das suas diferentes e inter-conexas dimensões.
Gostaria que reflexões suas com esta qualidade aparecessem na "Nova Águia". Já enviou colaboração para o próximo número?
Caro Casimiro
Reforçando o convite do Paulo:
Apesar de ires já publicar um poema no próximo número da Revista ("Que tem Goa que magoa", sugestão do Klatuu), convido-te a enviares um texto a partir do que tens escrito no blogue, algo que articule "Lusofonia" e "Império". Até ao final desta semana...
Depois, com mais tempo, gostaria também de me encontrar contigo para trocarmos mais umas ideias sobre o assunto...
Abraço MIL
Casimiro, estes confrontos de ideias entre ti, o Renato e o Klatuu têm sido muito esclarecedores e de extrema importância pedagógica.
Beijos
P.S. É sempre bom encontrar o Paulo Borges e o Renato nas caixas de comentários.
Caro Paulo, muito obrigado. Quanto à Águia, e alargando o agradecimento ao Renato, bom, tentarei :) não prometo por estar ainda em semana de enorme trabalho.
Paulo, de resti absolutamente de acordo quanto à pedagogia; quase todos os conceitos mais fundos estão semanticamente contaminados - é fundamental clarificar: e isso a meu ver tem que ser feito (como aqui vem sendo) pela dupla via do texto-texto e da poesia.
A outra questão que coloca é importantíssima, pois. Só tenho como resposta uma formulação provisória: o império não é o real, ou melhor, sê-lo significaria o integral cumprimento da profecia de Daniel, digamos assim: um cenário escatologico, ou apocaliptico. Mas nesse lugar-limite o próprio real se transfiguraria, creio (ou crêem por mim as crenças que tudo isto geraram...)
Num plano menos esoterico-profético - que julgo nos interessa mais - o império tem sempre um limite, talvez bem simbolizado nas esferas "complementares" do sacro-império e do papado medievais. A dupla função da pele que reveste o corpo pode ser aqui útil também como metáfora: isolando e absorvendo ao mesmo tempo, simultaneamente relaciona o corpo com o mundo preservando-o na sua autonomia de corpo.
É a ilimitação da lógica racional-mercantil induzida pela globalização que faz com que o chamado "império americano" (que a cavalga, embora para já se não dissolva nela) seja um caso particular de império, quiçá um "anti-império"...
Abraço
Obrigado, Clarissa. E reciprocamente, precisamos da beleza de textos como os teus - é nela que se antevê a verdade.
Beijos
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