“Noite de esperança, noite de angústia, menos caliginosa e turva do que o claro dia subsequente, ensolelhado, em demoníaco sarcasmo.
Noite entenebrecida e cruel, onde o clangor amarelo do rebate, afeiçoando-as, pôs nas almas em sobressalto a nota romanesca das catástrofes. Noite densa, noite escura, ai de nós, a noite luminosa e viva.
Noite de sonho, noite de anelo, em que pelo ar perpassou a cândida imagem da liberdade e fulgurou, crepitante, o clarão sagrado do futuro. Noite de pesadelo, noite de agonia, em que rangeram os ferrolhos das prisões, ávidas da pitança, e o anjo-da-guarda da pátria, soluçando, escondeu o rosto, na dor, desesperada e alucinante, da derrota.
O anjo-da-guarda da pátria! Da pátria? Sem ela não podemos subsistir, na verdade. Mas será esta bem a nossa?
Assim como se não pode viver sem pão, diz o poeta que também se não pode viver sem pátria.
Porém entendamo-nos: – a Pátria não é uma zona qualquer onde acidentalmente nascêssemos, povoada por gente que connosco não participe ideias e sentimentos, que ria da nossa aflição e rejubile com a nossa desdita! Um homem não está preso pelo pé ao húmus como uma hortaliça, e a terra donde proveio é-lhe bem indiferente, se essa leira, dura e ingrata, nem sequer se deixa infiltrar de suas corrosivas lágrimas.
A Pátria é um princípio de solidariedade colectiva. A Pátria é uma religião. Ora, se no templo não temos ingresso, consoante no campo não sofrem que construamos a tenda, somos, evidentemente, de mais. A hostilidade moral expulsa os que escapem à intimação económica de pronto despejo. Para outros é que luz o Sol; escorraçados como leprosos infectos, mendigos morais, teremos de deitar a sacola aos ombros, volver as costas, partir.
Nós, republicanos, estamos hoje, na sociedade portuguesa legal, proximamente como nela se achavam os cristãos-novos no século XVII. Curiosa contradição, que a nossa pusilanimidade explica. Constituímos, de secção consciente, a maioria, e não temos direitos; somos provisoriamente permitidos, por tolerância e como que por caridade. Mas não falaremos, não escreveremos, não nos associaremos, sob pena de purgarmos na cadeia o delito de possuir sangue na cabeça para conceber ideias, sangue no coração para as propagandear.”
Sampaio Bruno, in O Brasil Mental, Lello & Irmão, 1898
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