A pluralidade dos deuses é, com efeito, um dos característicos do paganismo. Mas cumpre entender qual o sentido que subjaz a essa pluralidade, cumpre ver qual o espírito que a anima. E para isso é preciso ter presentes três coisas: que acima dos deuses, no sistema pagão, paira sempre o Ananke, o Fatum, incorpóreo, submetendo os deuses como os homens aos seus decretos inexplicados; que os deuses se destacam dos homens e lhes são superiores por uma questão de grau, que não de ordem, que eles são antes homens aperfeiçoados, ou perfeitos, homens maiores, por assim dizer, do que homens diferentes ou ultra-homens; que um arbítrio absoluto, e não uma razão de ordem moral, qual a intervenção de Cristo pelos seus, ou os aparecimentos da Virgem aos seus merecidos pela virtude – rege as relações dos deuses com os homens. Com a percepção clara destes três elementos típicos do plurideísmo pagão, poder-se-á compreender o sentido íntimo da mitologia dos Gregos e dos Romanos.
O primeiro destes elementos confessa nos seus crentes a noção, intuitivamente exacta, da Lei Natural de que acima da própria força e grandeza dos deuses paira uma Lei, cujo sentido se desconhece, mas que age sempre e sobre tudo impera. No segundo elemento se reconhece a mentalidade de uma gente que tem a necessidade de objectivar tudo, para quem os deuses são, não fantasias concretizadas, mas probabilidades aumentadas. No terceiro elemento colhe-se a justa noção das coisas que tiveram os povos que notaram como a lei moral não tem valor fora da cidade e do povoado, como, no seu conjunto, não rege o mundo. Eles viram bem que a religião e a moral são necessidades sociais, não são factos que valham na metafísica das acções; que em tudo paira o arbítrio, no sentido de o amoral.
Esta noção instintiva do paganismo, de tratar a moral e a religião antes como virtudes cívicas do que como realidades metafísicas, é um dos factos em que mais há que reparar numa apreciação do espírito do paganismo.
Objectivos acima de tudo, os pagãos tinham a noção do Limite. Foram os primeiros a tê-la.
Ricardo Reis
Tudo o que sabemos sobre árvores é um conjunto estranho de chavões técnicos, símbolos, fragmentos de um universo descontínuo, despersonalizado e destituído de qualquer semelhança com a realidade. Na verdade, estamos permanentemente num estado alterado de consciência derivado dos hábitos incríveis de manipulação da percepção com que fomos obrigados a ser coniventes. A realidade é para nós algo abominável, nem queremos ouvir falar disso.
O primeiro destes elementos confessa nos seus crentes a noção, intuitivamente exacta, da Lei Natural de que acima da própria força e grandeza dos deuses paira uma Lei, cujo sentido se desconhece, mas que age sempre e sobre tudo impera. No segundo elemento se reconhece a mentalidade de uma gente que tem a necessidade de objectivar tudo, para quem os deuses são, não fantasias concretizadas, mas probabilidades aumentadas. No terceiro elemento colhe-se a justa noção das coisas que tiveram os povos que notaram como a lei moral não tem valor fora da cidade e do povoado, como, no seu conjunto, não rege o mundo. Eles viram bem que a religião e a moral são necessidades sociais, não são factos que valham na metafísica das acções; que em tudo paira o arbítrio, no sentido de o amoral.
Esta noção instintiva do paganismo, de tratar a moral e a religião antes como virtudes cívicas do que como realidades metafísicas, é um dos factos em que mais há que reparar numa apreciação do espírito do paganismo.
Objectivos acima de tudo, os pagãos tinham a noção do Limite. Foram os primeiros a tê-la.
Ricardo Reis
Tudo o que sabemos sobre árvores é um conjunto estranho de chavões técnicos, símbolos, fragmentos de um universo descontínuo, despersonalizado e destituído de qualquer semelhança com a realidade. Na verdade, estamos permanentemente num estado alterado de consciência derivado dos hábitos incríveis de manipulação da percepção com que fomos obrigados a ser coniventes. A realidade é para nós algo abominável, nem queremos ouvir falar disso.
A complexidade e mentalidade do universo urbano tem por equivalente o seu habitante que para se adaptar a este caos e conseguir ver alguma ordem nele tem de se ausentar do mundo prático do aqui e agora e passar para o mundo da imaginação e do simbolismo abstracto.
(...)
Não há cura para a morte. Quem vos vende disso, são charlatães, garanto-vos. Se algum orvalho da verdade caiu sobre eles, eles estão no seu intimo tão certos disto quanto eu - apenas não conseguem renunciar aos seus hábitos de vampiro. O único caminho é o do espírito na terra.
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Não há cura para a morte. Quem vos vende disso, são charlatães, garanto-vos. Se algum orvalho da verdade caiu sobre eles, eles estão no seu intimo tão certos disto quanto eu - apenas não conseguem renunciar aos seus hábitos de vampiro. O único caminho é o do espírito na terra.
Excerto de:
O Quarto Livro Sem Nome, Babalith
1 comentário:
"O único caminho é o do espírito na terra."
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