Caro João Beato:
Tenho obviamente algumas reservas quanto ao valor da 'tradição Rosa-Cruz' e da sua filiação em Amenofis IV (porque não, então, considerar desde já um 5.º pilar, o atlante? pelo menos trata-se de uma tradição que remonta a Platão e não ao Paris do séc. XVII...); sem que isso retire a importância da 'deriva' monoteísta da religião egípcia e do seu papel sem dúvida fundamental na progressiva convergência dos politeísmos do 'Próximo Oriente' num monoteísmo (ainda que 'dualista', passe a contradição) que acaba por florescer nos messianismos judaicos e talvez no possivelmente rival culto de Mitra.
Mas isso não é ainda a Europa, nem nos seus fundamentos nem nas suas raízes, do mesmo modo que a civilização megalítica não é ainda a Europa (mas não sabemos se Europa teria havido sem ela).
A ter que procurar um 'quarto pilar' iria mais depressa à Irlanda e aos míticos celtas...
Por mim, gostei muito e concordo com a triplicidade (subrepticiamente céltica, sei...) de Gheorghe Ceausescu: e ela não nega que não haveria gregos sem os egípcios, e certamente sem os cretenses e os misteriosos troianos; como não haveria talvez romanos sem os etruscos; e não haveria teologicamente cristandade sem os judeus, e materialmente não a haveria sem os fenícios e os outros 'povos do mar'.
Mas não vejo que haja uma herança (ou uma 'dimensão', para recorrer à final imagem belíssima do texto de G.C.) autonomamente egípcia.
Outra coisa, claro, é a sua leitura de Hegel, que não tenho competência para apreciar mas que li com muito interesse em texto anterior seu aqui publicado. Parece-me ser clara a tentação, dispersa pelo séc. XIX, de ver a Grécia à imagem de Atena nascida armada e adulta.... Decerto não foi assim, como Israel também não saiu decerto armado e inteiro dos rebanhos de Abraão.
Parece-me claro, também, que a progressiva auto-percepção da Europa nasceu - com Pepino o Breve e Carlos Magno, coroado imperador em 800 - no tempo do 'triplo cerco' viking, húngaro e muçulmano; esse, a Sul, cortou o Mediterrâneo (a marinha muçulmana tornou impossível a navegação) e deslocou o 'coração do Império' de Itália para a região entre o Sena e o Reno... Mas havia ainda Bizâncio (e continuou a haver por mais 600 anos), e a memória da unidade perdida entre as duas margens do Mar esteve ainda bem presente nas Cruzadas e no Reino Cristão de Jerusalém - como ainda na (re)conquista Portuguesa de Ceuta, que não foi nem podia ter sido vista como uma aventura 'colonial'. Creio que o Renascimento (já com os turcos a tomar Bizâncio, em processo de avanço que só foi detido com Lepanto e Alcácer-Quibir, e mesmo assim com Viena de Áustria cercada depois) terá muita responsabilidade na progressiva 'limpeza étnica' das origens, rejeitando o judaísmo, 'purificando' gregos e romanos - como se fez com a reinvenção do 'latim erudito', acabando com as sobrevivências pagãs na lamentável caça às bruxas que varreu a Europa protestante e, principalmente, rejeitando como 'bárbaro' e 'gótico' os mil anos de história 'medieval' que separavam os imperadores romanos dos reis absolutos.
Mas lhe digo onde está para mim, senão a herança, pelo menos a luz que o Egipto pode dar à Europa: toda a existência metapolítica da Europa revive o mito de Osíris, o deus morto e despedaçado por Set, o deus de cabeça-de-burro, do deserto e da dissolução das trevas; e o mito do paciente e amoroso trabalho de Ísis a recolher os despojos fragmentados do seu amante, guardando e aguardando a ressurreição cósmica da Unidade; significativa demanda graalica de reunião dos catorze pedaços (tantos como os passos da Cruz...) em que ficou a faltar o da sua masculinidade, lugar da permanente ferida do Rei Pescador. Essa masculinidade veio a ser regenerada pela Rainha, mas por artes mágicas e artificiais, o que talvez explique o falocentrismo excessivo e inseguro de uma certa, de uma tão conhecida nossa Europa cujas feridas não souberam nunca sarar.
Mistérios do Touro e do Falcão.
Cordiais cumprimentos,
1 comentário:
Tens que escrever um texto para o próximo número...
Abraço
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