Um Homem Nunca Chora
Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.
Eu julgava-me um homem.
Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.
Agora tremo.
E agora choro.
Como um homem treme.
Como chora um homem!
José Craveirinha
Daqui a sensivelmente três horas terei acabado de entrar na prisão para dar a primeira aula à última turma que me falta conhecer. Talvez seja a primeira aula da minha vida, aquela que inaugurará uma via para pensar e viver a Frátria, aí no centro dum furacão social e humano, o estádio intermediário daqueles que se encontram para lá das margens da justificação e da pertença, seres humanos como eu, exilados da humanidade e do conforto de se saberem aceites pelo mais fundo de si.
Esta caminhada será, de certo, importante no que respeita à minha adesão aos valores e às práticas me têm norteado. Será uma prova de fogo, também em relação à minha visão da política e da lusofonia. Por muitas razões, mas também porque terei que abordar com os alunos temas relacionados com a nossa língua e a nossa cultura, a partir da vida quotidiana, abrindo para o universal, verdadeiro sentido duma vida bendita (bem dita, ou dita no e a partir do Bem, isto sem moralismo, porque o Bem não é moral).
Seremos uma equipa de sete professores, todos voluntários e unidos num mesmo propósito. Teria sido prudente decidirmos manter a nossa acção bem dentro dos limites da matéria a leccionar, mas na nossa primeira reunião olhámo-nos nos olhos e concordámos que o melhor era ir fundo. Vamos mesmo mergulhar de cabeça nos problemas que assolam aquelas vidas inseguras de si próprias.
Não fosse uma mudança de última hora e eu teria sido o primeiro a confrontar-me com essa nossa turma tão especial. Mas hoje vou conhecer os alunos tendo já falado com os colegas que os conheceram primeiro e a ideia que fica é que o primeiro contacto foi excelente e que vai ser necessária muita força interior para enfrentar este desafio. Mas vi muita esperança nos olhos dos meus colegas.
É tempo de me libertar de vez do meu cárcere privado. Só assim poderei conduzir-nos, a mim e aos alunos, para o espaço da aula vivida, num sentido muito agostiniano, como tempo livre. Dentro da prisão os homens vivem na sombra do que fizeram. Vou tentar levar os meus alunos a conectarem-se com o sentido do que não fizeram. Porque todos nós somos uma mescla de sonho e de ilusão, de verdade e de esperança. E talvez nos mantenhamos vivos porque há sonhos que nunca morrem. E no fundo, bem lá no fundo, é o Amor. O Amor, essa energia que nos pode transformar em santos, em pecadores, em homens de bem ou em monstros, e são estes últimos que mostram aos outros o valor da pureza e da compaixão. Talvez encontre por ali alguns mestres. Quem sabe?
Depois de me apresentar e de ter um primeiro contacto com os alunos, vou explorar com eles dois textos. O primeiro será este:
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Uma parábola
"Eu mendigava de porta em porta, pelo caminho da aldeia, quando um carro de ouro surgiu à distância e parecia um sonho esplêndido. Perguntei a mim mesmo quem seria esse Rei de todos os reis. As minhas esperanças subiram ao céu. Eu pensava: terminaram os meus dias nefastos. E tive esperança de esmolas espontâneas e de riquezas soltas na areia. O carro parou onde eu estava. Ele olhou-me e sorriu. Eu senti que afinal chegara o dia da minha felicidade. E de repente estendeu-me a mão direita, perguntando: "Que tens para mim?" Ah, o teu gesto real de estender a mão direita a um mendigo! Confuso, perplexo, meti a mão na sacola e, devagar, retirei um pequeno grão de trigo, que lhe ofereci. Mas, à tardinha, foi enorme a minha surpresa.
Esvaziando a minha sacola, vi um grão de ouro entre os de trigo.
Chorei lágrimas amargas e lamentando-me dizia: "Por que não lhedei tudo?"
|Rabindranath Tagore
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|Actividades:
1. Qual a moral desta história? Exponha-a, fundamentando as suas conclusões.
2. Esta história pode aplicar-se à nossa vida quotidiana? Justifique a sua resposta com base em situações do quotidiano.
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Pensar com os alunos, lado a lado, a partir da mesma ferida, onde se cravam as raízes da ignorância e do medo. A culpa, sempre a culpa. A culpa de não nos entregarmos íntegra e totalmente. Leonardo Coimbra tem um texto em que fala do homem como um mendicante do Ser. Mas não é o Ser que se dá em esmola. O Ser é uma dádiva que vem de dentro. Nós participamos criativamente, ou criacionalmente, do Ser. Assim, a vida será o que nos dermos, o que dermos, a nós, aos outros, ao mundo e ao que mais houver, pois há sempre mais.
E aqui radica o sentido do segundo texto de que nos vamos abeirar, desde a sua margem, que é também um beiral e uma amurada. Somos aves metafísicas com saudades do mar. E o mar é um íntimo segredo do céu. Eis o texto:
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O Eco
Um homem caminhava por um vale dos Pirinéus franceses, a dada altura encontrou um velho pastor. Dividiu com ele o seu alimento, e ficaram um longo tempo a conversar sobre a vida.
Num dado momento, o tema começou a girar em torno da existência de Deus.
- Se eu acreditar em Deus – disse o homem – tenho que aceitar também que não sou livre, e nada do que faço é minha responsabilidade. Pois as pessoas dizem que Ele é omnipotente, e conhece o presente, o passado e o futuro.
O pastor começou a cantar. Como estavam num desfiladeiro de montanhas, a música ecoava suavemente e enchia o vale.
De repente, o pastor interrompeu a música, e começou a blasfemar contra tudo e todos. Os gritos do pastor também se reflectiram nas montanhas, e voltaram até onde os dois se encontravam.
- A vida é este vale, as montanhas são a consciência do Senhor, e a voz do homem é o seu destino – disse o pastor – Somos livres para cantar ou blasfemar, mas tudo aquilo que fizermos, será levado até Ele, e nos será devolvido da mesma forma.
“Deus é o eco de nossas acções”. |Paulo Coelho
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1. Leia o texto e, de seguida, levante todos os problemas que ele lhe colocar.
2. Comente a última afirmação do texto, aplicando a sua interpretação à sua vida.
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Deus, enclausurado entre as paredes da prisão, feitas de betão armado, de culpa e de remorso, poderá, desfeito em sede, vir dar-se a beber no tempo precário duma sala de aula?
Espero que essas paredes façam eco.
13 comentários:
Paulo Feitais, eu li o texto e vou dizer qual o problema que se me coloca.
Em 1975 e em 1976, a minha professora de inglês resolveu "ir mais fundo". E - primeiro em mau inglês e depois, por impaciência, em mau português - passou a falar-nos, às Segundas e Quartas, dos caminhos da Salvação.
Aprendi coisas inesquecíveis sobre a União Soviética. Infelizmente, ainda hoje não sou fluente a inglês.
Um cordial abraço.
PS. O que digo não é necessariamente uma crítica aos caminhos da Salvação. Não fosse isso, talvez nunca chegasse a poder ler Stendhal e Baudelaire no original.
É Casimiro, há que saber falar dos caminhos da perdição. Para haver o que nos salve da salvação, ou da sua necessidade. :)
Perdição, que o pensamento /
subiu a um alto lugar /
perde a pena do voar /
ganha a pena do tormento...
:)
Sinto que me querem devolver aos bancos de escola mas o ensino quer doutrinar e o professor um velho padre.
Paulo para mim chegou aquele que a Igreja fez santo e erradicou as mulheres do Cristianismo que fundou (para os mais desatentos, abriu ontem a caça aos coelhos).
Um abraço
Absurdo, mau demais. Um bom exemplo da mediocridade "letrada" de algum ensino.
Achei lindo o que escreveu!
Muito obrigada.
Segue, Paulo, o teu caminho, que é nobre, por mais incompreensão que te acosse... Quem não vê o privilégio de ter um professor a falar de coisas destas e a dar às mentes a possibilidade de se abrirem, sobretudo entre os muros de uma prisão!?... (como se não vivêssemos todos entre os muros de uma prisão...)
Caro professor ha 40 anos diziam as progenitoras "escolhe bem os teus professores", mas se me provar pertencer ao sexo feminino eu acredito em si.
Eu vejo mal mas mesmo de oculos apenas vejo aulas doutrinarias e doutrina sem nexo. Esqueceu os programas ou tudo vale?
O bom professor é aquele que dá o essencial do programa sem se dar por isso.
Todos nós pertencemos aos dois sexos e a mais além, sobretudo a mais além.
As coisas que aprendo consigo caro professor, mas olhe que filho meu já estava noutra turma.
Até eu, se me tivesse como professor, já estava noutra turma!...
Saúde!
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