A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

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sexta-feira, 29 de agosto de 2008

O dancing-bar "Vasco da Gama"




No tempo em que as noites adormeciam ao embalo de “era uma vez…” e puxava para os olhos a manta protectora dos medos nocturnos, o bulício nocturno da avenida de Angola entrava pela varanda fronteira à sala que à noite era quarto, da longa recta de alcatrão que se metamorfoseava quando os candeeiros se acendiam e as formigas humanas se travestiam no exótico da vida nocturna, em que homens solitários se refugiam em bandos de seus iguais na busca da anestesia alcoólica e do sexo barato que o som alto das juke-boxes promete.

Quase fronteiro ao meu está o prédio onde é rei da noite local o ‘Dancing-Bar Vasco da Gama’, catedral da luxúria e dos desejos lascivos com bolsos menos afortunados. Uma prostituição de classe intermédia, sem ser a naif que se visita nas barracas do caniço profundo nem a espampanante dos bares próximos ao porto, lá na zona baixa da cidade, Rua Araújo e adjacentes; algo a meio caminho entre a modesta capulana que se abre num só gesto, para alimentar a criança que também aninha, e as mini-mini saias de lantejoulas e meias de nylon, também o modesto lenço na cabeça em oposição à cabeleira postiça, rígida de laca e despenteada em vãs ilusões.


Cresci conhecendo-as, mirando ao longe a sua ostentação corporal, e não fui muito tempo indiferente à sua oferta. Nas noites em que adormecia ouvindo o seu linguarejar que subia a rua onde os táxis se sucediam, as suas gargalhadas, às vezes os seus gritos e impropérios, na privacidade dos sonhos íntimos adivinhava em mim cresceres, maturações corporais, e nas carícias onanistas que a mim concedia eram elas as ninfas que oniricamente as guiavam.

A fauna militar em folga era a clientela de eleição do bar, mais o pequeno assalariado da cidade de cimento, mais todos os malandros e proto-malandros do bairro e arredores. Por tudo isto, pelo caldeirão inevitavelmente explosivo que junta putedo e tropa, embriaguês de frustrações e vidas falhadas, a autoridade policial era visita regular do ‘Vasco da Gama’. Se os jeep’s da polícia civil só lá acorriam quando chamados a por cobro a desmandos, mais frequentes em fins-de-semana, os da polícia militar paravam sempre por lá na sua ronda, com os tropas de capacete branco bebendo nos olhares de receio os ‘desenfiados’ que procuravam. Noutras vezes acorriam chamados pela polícia civil por causa de brigas que envolviam militares, assim como a polícia aérea e a naval, embora estas fossem raras de ver nos subúrbios da cidade pois os seus soldados eram elite ao lado do vulgo ‘feijão-verde’, e saciavam necessidades de evasão em locais mais perfumados que este ‘dancing-bar’ de 3ª classe, onde as incansáveis juke-boxes eram substituídas por veros conjuntos musicais, e a idade das moças ofertantes não pesava tanto nos atributos físicos que vendiam, como nas, que em regra, ganhavam os dias nas noites do ‘Vasco da Gama’. Naturalmente estava proibido de lá entrar, ou sequer de me abeirar, quando os serões de verão autorizavam gostosas horas em brincadeiras no passeio em frente ao meu prédio.

Entre nós, putos do prédio que nos juntávamos em conversas secretas num qualquer muro enseroado tentando adivinhar o crescer, o ‘Vasco da Gama’ e o seu acesso era visto como se de passaporte para a desejada vida adulta se tratasse. O nocturno, o verdadeiro. Porque, à luz do dia, todos nós, em grupo ou a solo, já lá tínhamos penetrado olhos curiosos a pretexto duma chuinga ou duma laranjada. Tentando descobrir no bucólico vazio das mesas a magia da sua animação nocturna, no olhar a uma ou outra prostituta em espera de trabalho fora de horas, tentávamos adivinhar segredos que a vida ainda não desmistificara. Passaram anos e noites húmidas antes de ousar nele penetrar na sua hora própria, palácio de desejos e tentações revelado em toda a sua cor e ruído, alegria. Timidamente, claro. Mais ousadamente à segunda, claro, como se de veterano desses folguedos se tratasse. Depois mudei de bairro e não tenho memória de lá ter regressado, ganhara outras asas e independências que iam mais longe que o furtivo atravessar duma rua. Mas passava lá em frente muitas vezes, mais de dia que de noite, e havia sempre um olhar cúmplice que trocava com a sua fachada, com os seus velhos dizeres a néon.

Quando a Frente de Libertação de Moçambique entrou na capital moçambicana após o acordo de Lusaka de 1974, careceu dum local para sua sede e foi o edifício do velhinho ‘dancing-bar Vasco da Gama’ que foi escolhido. Foi simbólica a mensagem que pretendeu transmitir, e eu percebi-a. Mas, quando lá passava e os olhos brilhavam ao fitá-lo, não o faziam só à bandeira das utopias que lá esvoaçava, ainda prometedora; era também ao néon definitivamente apagado e às memórias que ele me induzia, ao tempo do “era uma vez”, vezes tantas que marcaram o meu crescer e ensinaram-me que há mistério e beleza numa puta que sorri e gargalha, seja envolta em gasta capulana ou despida em lantejoulas.



(fotos do jornalista moçambicano Ricardo Rangel, ambas obtidas no blogue do meu blogo-amigo 'jpt': o "ma-schamba".)

5 comentários:

Maria Arvore disse...

A cumplicidade com os edifícios perdura uma vida e nunca falha. Porque foi às suas paredes que confessámos os nossos sentimentos... e crescemos juntos. :)

Casimiro Ceivães disse...

Há coisas do catano e pronto, qualquer dia já escrevo tão bem como o Lobo Antunes.

Oh Carlos Gil, venho aqui sublinhar o último parágrafo. No fundo, há homens para quem as putas foram a escola do desprezo, outros para quem foram elas a "escola do mistério e da beleza". Não há nada a fazer: os olhos são mesmo uma coisa do catano.

Abraço

Antunes Ferreira disse...

LISBOA - PORTUGAL

Olá!

Concordo inteiramente com o propósito iniciado, de resto tal como explico de seguida.

Cheguei a este blogue através de outros que costumo visitar e neles postar comentários. Cheguei, vi e… gostei. Está bem feito, está comunicativo, está agradável, está bonito – e está bem escrito. Esta é uma deformação profissional de um jornalista e dizem que escritor a caminho dos 67…, mas que continua bem-disposto, alegre, piadista, gozão, e – vivo.

Só uma anotaçãozinha: Durante 16 anos trabalhei no Diário de Notícias, o mais importante de Portugal, onde cheguei a Chefe da Redacção – sem motivo justificativo… pelo menos que eu desse com isso… E acabo de publicar – vejam lá para o que me deu a «provecta» idade… - o me(a)u primeiro livro de ficção «Morte na Picada», contos da guerra colonial em Angola (1966/68) em que, bem contra vontade, infelizmente participei como oficial miliciano.

Muito prazer me darás se quiseres visitar o meu blogue e nele deixar comentários. E enviar-me colaboração. Basta um imeile / imilio (criações minhas e preciosas…) e já está. E se o quiseres divulgar a Amiga(o)s, ainda melhor. Tanto o blogue, como o imeile, tá? Muito obrigado

www.travessadoferreira.blogspot.com
ferreihenrique@gmail.com

Estou a implementar e desenvolver o projecto que tenho para o meu www.travessadoferreira.blogspot.com e que é conferir ao meu/vosso/NOSSO blogue a característica de PONTO DE ENCONTRO entre os Países fraternalmente ligados – Portugal e Brasil. E outros PALOP e etc…
Se me enviares o teu IMEILE, poderei enviar-te «coisas» que ache interessantes. Se, porém, não as quiseres, diz-me que eu paro logo. Sou muito bem-mandado (a minha mulher que o diga…) e muito obediente (cf. parênteses anterior). Abrações e queijinhos, convenientemente repartidos e distribuídos

– Desculpa por este comentário ser tão comprido e chato. Como a espada do D. Afonso Henriques…
- Já conheces o me(a)u «Morte na Picada» que acima menciono? Há quem diga que é muito bom. E até que é o melhor que se escreveu em Portugal sobre o tema. Dizem… Obviamente que não sou eu a dizê-lo… Só faltava… E também há quem tenha escrito que é SANGUE & SEXO… Malandrecos… Pelo sim, pelo não, compra-o.
Depois de o leres, se, por singular acaso, tiveres gostado dele, terás de comprar muitíssimos mais exemplares. São excelentes prendas de aniversários, casamentos, divórcios, baptizados, e datas como Natais, Carnavais, Anos Novos, Páscoas, Pentecostes, vinte e cincos de Abris, cincos de Outubro, dezes de Junhos. Até para funerais. Oferecer o «Morte» na morte fica bem em qualquer velório que se preze. E, além disso, recomenda-o, publicita-o, propagandeia-o, impinge-o aos Amigos, conhecidos, desconhecidos & outros, SARL. Os euros estão tão raros e... caros...
++++++++++++
A editora da obra é a Via Occidentalis (occidentalis@netcabo.pt) cujo site é www.via-occidentalis.blogs.sapo.pt. Neste blogue podem ser consultados mais dados sobre o livro, cujo preço de capa é € 14,70. ATENÇÃO: Pode ser comprado pela Internet.
++++++++++++
NOTA IMPORTANTE: Este texto de apreciação e informação é similar em todos os casos em que o utilizo. Digo isto, para quem não surjam dúvidas ou suspeitas sobre a repetição em diferentes blogues. E para que ninguém se sinta ludibriado – ou ofendido… Há feitios que… Mas, sublinho, apenas o uso quando o entendo, isto é, quando gosto mesmo dos que visito. Nos outros onde também vou, se não gosto, saio sem comentários. Há muitos mais. Aqui na terrinha diz-se que «se não gostas, põe na beirinha do prato…»

Renato Epifânio disse...

Caro Antunes Ferreira

Já que gostou tanto do nosso blogue e do nosso movimento, convido-o a aderir.
Depois, poderá publicar o que bem entender.

Abraço MIL

Carlos Gil disse...

sim, Maria, há marcas na coronha que são mais fundas que a funda onde se vem a guadar 'a fisga dos adultos'. hoje baús, então cantos que eram belos por imaginarmo-los secretos e só nossos. um dancihdg-bar que se preitava do outro lado da rua, sonhando com a 'prova de fogo' da masculinidade e que 'nunca mais vinha. o vão de escadas onde os calções e joelhos esfolados encheram o peito mafricelas de coragem e deram o prmieiro beijinho à vizinha, que há dias e dias se fazia a ele. um pormenor aqui, uma parede caiada acolá. até tectos com buracos onde se viam as estrelas e por onde entravam os ruidos mágicos da noite no mato. um enredado toponímico que, iniciado, nunca se lhe vê fim enquanto continuarmos pedreiros de nós mesmos, umas vezes patos-bravos e lá vai uma moeda à juke box, noutros o cimento é aplicado com mais esmero. av. de Angola da minha meninice e pré-adolescência... como a estimo quando remexo cá na caixa procurando os berlindes que perdi, e procurando também descobrir como e porquê os perdi...
uma vez fiz um "poema" (daqueles sem métrica e borrão no papel, os que sei e gosto) ao meu bairro, e chamei-lhe mesmo assim. está no Xicuembo. não acho desfasado ou abusivo transcrevê-lo: as linhas da teiia estão todas emaranhadas umas nas outras e no remexer dei por mim com o papel na mão, capulanas e lantejoulas, areia quente sob os pés:

Um bairro


Mafalala, oh Mafalala
bairro rico ao metro quadrado
o maior índice da cidade
de carrinhos em arame moldado

Mafalala, oh Mafalala
onde vivi até aos quinze
bairro que queriam que eu visse
o calção limpo, os olhos fechados

Mafalala, oh Mafalala
bairro de putas e operários
vendedoras de bazar, mainatos,
tantos caminhos cruzados

Mafalala, oh Mafalala
mil caminhos para milhares
teus becos, meu gelo-doce
foi lá que despedi a virgindade

Mafalala, oh Mafalala
onde vivi até aos quinze…
eu de olhos fechados
tu a ensinares-me a olhar

Mafalala, oh Mafalala…
....

acho, Casimio, que o lençol que escrevi à minha querida amiga Maria conto de, sendo-o, não sou daltónico no cherchez la femme. e há um travo especial, vintage, nos soutiens de rendas vermelhas e nas meias em rede brancas, o brilho das lantejoulas, os lábios enormes e brejeiros, o luxo supremo da misse postiça e carregada de laca.
mas confidencio que embora gostasse do brilho das luzes, sentia-me sempre mais terno quando tanta luz e tanto brilho estavam estampavam uma capulana, um único nó mágico que se desfazia e... eu cresci ou assim julgava e julguei, os húmidos nocturnos que me enrubesciam ganharam-me a luz do orgulho parvo do miúdo que julga que em dez minutos cresceu metro e meio. há coisas do catano, pois há: aindaandava o ALA no Liceu e já eu era seu leitor admirador, sem nenhum de nós o saber. magias africanas...

....


Antunes: proponho-lhe um negócio e o amigo ainda ganha setenta c~encimos: compre-me o meu e eu compro-lhe o seu. sim, também está na Internet e até lho levam a casa, portes à cobrança. tenho é de preveni-lo: o Sangue e o Sexo nem são nem muito nem pouco, apenas o qb duma parcela da vidinha dsete que, também sem saber como, uma vez construíu um carro de rolamentos e estampei-me no fundo da rua - o Sangue - , e poupei no dinheiro dos lanches escolares os vinte escudos que foram o passaporte para para a outra parte - o Sexo.
provavelmente iremos divertirnos a ler-nos mutuamente. 'bora nessa?
....

Renato: eu prometo que, da minha parte na experiência, depois conto aqui :-)