Costumo olhar a rua debruçado no parapeito. Olho para o velho sentado imóvel na cadeira. Ele sempre está olhando pelas grades do portão. Eu nunca sei se ele olha as coisas que passam ou as coisas que já passaram. Os velhos têm essa vantagem sobre nós, quando a vida está entediante, eles vivem a emoção de causos de trinta anos atrás. Observo também os pássaros, eles nem sempre batem as asas e voam. Algumas vezes tropeçam atrapalhados com suas duas pernas. Ciscando no chão feito gente besta. Meu vô contava que as aves eram seres endemoninhados, por isso, tinham sido castigados com pernas que não serviam pra nada. Eu acreditei por muito tempo nisso. Mas, hoje eu me pergunto: “Por que Deus lhes daria asas então?” Meu avô responderia que não foi Deus.
_ Você é irritante!
_ Você tá louca?! Eu só pedi um café e você me vem com quatro pedras na mão.
_ O problema é esse, você pede, pede, pede, o tempo todo só pedindo.
_ Tudo bem, não te peço mais nada.
_ Vai ser mesmo muito engraçado. O que vai fazer? Vai mandar em vez de pedir?
_ Quem sabe não é uma boa solução.
_ Você fica ainda mais insuportável irônico.
_ Desculpa meu amor, na verdade eu nem sei porque a gente tá brigando.
_ Deve ser porque eu gosto de reclamar de barriga cheia, não é isso que você vive repetindo?
_ Não digo mais, pronto! Não falo mais nada, tá bom assim?
_ Olha bem pra minha cara e me diz: qual é a semelhança entre mim e seus pássaros?
_ Até onde eu saiba nenhuma, existe alguma?
_ Pois eu te digo qual é a semelhança: é a gaiola.
_ Ataque de feminismo agora? Você quer dizer, então, que eu sou um carrasco e estou te prendendo??? Desculpa, não estou vendo gaiola nenhuma.
_ Não, quero dizer apenas que me sinto presa. Depois de todos esses anos...Você sempre construindo todas essas gaiolas, sempre num silêncio sepulcral, de repente só enxergo grades ao redor de mim.
_ E o que pretende fazer?
_ Não sei ainda.
_ Você está querendo fugir agora? Até mesmo os pássaros se acostumam com as grades, ninguém é livre, eu não sou livre, seria ridículo ser.
_ Nem por isso eles deixam de se debater dentro das gaiolas.
_ Pára de me apavorar, o que vai fazer? Você sempre soube e até achava graça porque eu era o construtor de gaiolas.
_ Com o tempo as piadas perdem a graça. Talvez eu faça como seus pássaros, passe a vida me debatendo, até perder todas as asas, até esquecer da minha condição de pássaro e passe os dias olhando pelos vãos das grades como uma condenada.
_ Eu não posso fazer nada, se a condição dos pássaros é voar, a minha, é cortar-lhes as asas. Afinal, você sempre soube, como já disse, eu sou um simples construtor de gaiolas, essa é a minha triste condição. É o que Deus espera de mim, que eu atrofie as asas que Ele, sem pensar, criou.
À tarde os pombos devoram as migalhas da cidade. Ao acordar ainda sinto o cheiro de suas fezes. Durante o dia ela sempre repetia um trecho daquela canção do Elvis: “como podemos ser felizes com tantas suspeitas em nossas mentes?”. Antes dela partir, um pássaro negro, de canto triste, às vezes, pousava no peitoril da janela, outras vezes, ciscava solitário no chão.
Marta era minha mulher. Até o dia em que ela fugiu com o Circo ( as mulheres são mesmo excêntricas). Alguns dizem que se apaixonou pelo equilibrista. Talvez seja verdade, ela adorava os pássaros soltos e sem asas (aquelas aves domesticadas que fogem das gaiolas e por ironia, sempre acabam devorados pelos gatos).
Na manhã de sua partida, encontrei um pombo morto na escada. Era um aviso. Certas noites, sonho com pombos ensangüentados por toda a casa.
Sinto saudades, ela falava tanto de prisão, no entanto, nunca percebeu que sua libertada era paga com o meu cárcere. Faz muito tempo que não a vejo. Um palhaço, passa por aqui e me dá notícias vagas e duvidosas. Ele disse que hoje Marta se apresenta como a Mulher Barbada. Não devo ter reparado quando se deu essa mudança, logo ela que vivia olhando no espelho. Penso que tenha sido alguma anomalia provocada pelo convívio com as aves (o pássaro negro mesmo depois de sua partida, cisca no peitoril da janela feito um sambista louco e triste. Tem dias que acho que cortará as próprias asas, para que possa cair sossegado em cima da morte).
Muitas noites eu penso em suicídio, outras fico acordado observando o sono leve dos pássaros, desde que ela se foi eu gosto muito mais dos pássaros. Antes não, mas agora enxergo a semelhança que ela tanto falava. As asas me lembram a ansiedade que ela sentia em voar. Seu canto, suas penas espalhadas nos cantos da gaiola. E o pássaro negro sempre pousado no peitoril implorando piedade. Seu olho cego mergulhado em tristeza. Ela se foi, mas algo ficou (agora entendo os pêlos pelo banheiro), talvez o barbeador que compartilhávamos. A lâmina está enferrujando. Eu nunca consegui tirá-lo da beira da pia. Todos os dias eu olho para ele, eu tenho a esperança que, num momento de lucidez, ela deixe o Circo e volte pra casa. Entretanto, o barbeador nunca se move, a não ser hoje de manhã, ao entrar no banheiro, eu não o vira, olhei para o chão, lá estava ele, caído e intacto. Na torneira uma barata triunfante levantava suas antenas compridas e asquerosas.
Foi difícil, mas hoje levantei, lavei a cara, fiz a barba e tomei uma decisão: irei até o Circo. Essa decisão é ridícula, eu sei, detesto essa alegria tonta e debochada sob a lona. Porém, os tolos precisam pagar por seus erros, então, irei e acabou, nada fará com que mude de idéia. A tarde toda eu escutei Blackbird dos Beatles. Eu não esperava a chuva, todavia ela veio. Eu sempre achei que havia uma relação entre os cantos dos pássaros e a parada da chuva, deve existir alguma semelhança
entre as aves e o arco-íris. Assim como há uma certa semelhança entre Deus e o Diabo. Depois do canto de hoje, nunca mais enxergarei as tempestades, sinto isso. A chuva não fez com que desistisse dos meus planos.
Fui até o Circo e só a lembrança do cheiro da lona me causa náuseas. Ela estava lá, não linda, mas necessária, ela ignorou minha presença, me tratou como um simples público pagante. Eu a perdôo, o ódio é próprio dos fracos. Eu só não podia me deixar intimidar, afinal, os tolos precisam pagar por seus erros. Olhei para o equilibrista e ele não pareceu menos louco do que eu, talvez a altura lhe proporcione uma importância que não tenha. Me aproximei, o vermelho do nariz do palhaço tomou conta de mim: “ah, ah, ah, o equilibrista se equilibra nas barbas da mulher, ah, ah, ah...”
A única coisa que me recordo é da barba comprida e macia e da faca brotando de sua barriga, não, não fui eu, eu juro, ela brotava como uma planta que desvirgina a terra (ou como um pássaro que atravessa os vãos da gaiola desvairado).
Agora, das grades da janela onde me encontro, apenas vejo grandes cipestres azuis...Trago no bolso uma foto de meu avô (ele também construía gaiolas). Ele tinha olhos pequenos como os dos passarinhos e como eles se assustava facilmente. Bastavam alguns passos mais fortes e ele se armava com a espingarda, embora, nunca houvesse balas dentro dela. Meu vô era um sonhador.
Quanto a mim, ainda construo gaiolas, mas não crio mais pássaros. Tudo que voa, pode de repente criar asas.
Márcia Barbieri
_ Você é irritante!
_ Você tá louca?! Eu só pedi um café e você me vem com quatro pedras na mão.
_ O problema é esse, você pede, pede, pede, o tempo todo só pedindo.
_ Tudo bem, não te peço mais nada.
_ Vai ser mesmo muito engraçado. O que vai fazer? Vai mandar em vez de pedir?
_ Quem sabe não é uma boa solução.
_ Você fica ainda mais insuportável irônico.
_ Desculpa meu amor, na verdade eu nem sei porque a gente tá brigando.
_ Deve ser porque eu gosto de reclamar de barriga cheia, não é isso que você vive repetindo?
_ Não digo mais, pronto! Não falo mais nada, tá bom assim?
_ Olha bem pra minha cara e me diz: qual é a semelhança entre mim e seus pássaros?
_ Até onde eu saiba nenhuma, existe alguma?
_ Pois eu te digo qual é a semelhança: é a gaiola.
_ Ataque de feminismo agora? Você quer dizer, então, que eu sou um carrasco e estou te prendendo??? Desculpa, não estou vendo gaiola nenhuma.
_ Não, quero dizer apenas que me sinto presa. Depois de todos esses anos...Você sempre construindo todas essas gaiolas, sempre num silêncio sepulcral, de repente só enxergo grades ao redor de mim.
_ E o que pretende fazer?
_ Não sei ainda.
_ Você está querendo fugir agora? Até mesmo os pássaros se acostumam com as grades, ninguém é livre, eu não sou livre, seria ridículo ser.
_ Nem por isso eles deixam de se debater dentro das gaiolas.
_ Pára de me apavorar, o que vai fazer? Você sempre soube e até achava graça porque eu era o construtor de gaiolas.
_ Com o tempo as piadas perdem a graça. Talvez eu faça como seus pássaros, passe a vida me debatendo, até perder todas as asas, até esquecer da minha condição de pássaro e passe os dias olhando pelos vãos das grades como uma condenada.
_ Eu não posso fazer nada, se a condição dos pássaros é voar, a minha, é cortar-lhes as asas. Afinal, você sempre soube, como já disse, eu sou um simples construtor de gaiolas, essa é a minha triste condição. É o que Deus espera de mim, que eu atrofie as asas que Ele, sem pensar, criou.
À tarde os pombos devoram as migalhas da cidade. Ao acordar ainda sinto o cheiro de suas fezes. Durante o dia ela sempre repetia um trecho daquela canção do Elvis: “como podemos ser felizes com tantas suspeitas em nossas mentes?”. Antes dela partir, um pássaro negro, de canto triste, às vezes, pousava no peitoril da janela, outras vezes, ciscava solitário no chão.
Marta era minha mulher. Até o dia em que ela fugiu com o Circo ( as mulheres são mesmo excêntricas). Alguns dizem que se apaixonou pelo equilibrista. Talvez seja verdade, ela adorava os pássaros soltos e sem asas (aquelas aves domesticadas que fogem das gaiolas e por ironia, sempre acabam devorados pelos gatos).
Na manhã de sua partida, encontrei um pombo morto na escada. Era um aviso. Certas noites, sonho com pombos ensangüentados por toda a casa.
Sinto saudades, ela falava tanto de prisão, no entanto, nunca percebeu que sua libertada era paga com o meu cárcere. Faz muito tempo que não a vejo. Um palhaço, passa por aqui e me dá notícias vagas e duvidosas. Ele disse que hoje Marta se apresenta como a Mulher Barbada. Não devo ter reparado quando se deu essa mudança, logo ela que vivia olhando no espelho. Penso que tenha sido alguma anomalia provocada pelo convívio com as aves (o pássaro negro mesmo depois de sua partida, cisca no peitoril da janela feito um sambista louco e triste. Tem dias que acho que cortará as próprias asas, para que possa cair sossegado em cima da morte).
Muitas noites eu penso em suicídio, outras fico acordado observando o sono leve dos pássaros, desde que ela se foi eu gosto muito mais dos pássaros. Antes não, mas agora enxergo a semelhança que ela tanto falava. As asas me lembram a ansiedade que ela sentia em voar. Seu canto, suas penas espalhadas nos cantos da gaiola. E o pássaro negro sempre pousado no peitoril implorando piedade. Seu olho cego mergulhado em tristeza. Ela se foi, mas algo ficou (agora entendo os pêlos pelo banheiro), talvez o barbeador que compartilhávamos. A lâmina está enferrujando. Eu nunca consegui tirá-lo da beira da pia. Todos os dias eu olho para ele, eu tenho a esperança que, num momento de lucidez, ela deixe o Circo e volte pra casa. Entretanto, o barbeador nunca se move, a não ser hoje de manhã, ao entrar no banheiro, eu não o vira, olhei para o chão, lá estava ele, caído e intacto. Na torneira uma barata triunfante levantava suas antenas compridas e asquerosas.
Foi difícil, mas hoje levantei, lavei a cara, fiz a barba e tomei uma decisão: irei até o Circo. Essa decisão é ridícula, eu sei, detesto essa alegria tonta e debochada sob a lona. Porém, os tolos precisam pagar por seus erros, então, irei e acabou, nada fará com que mude de idéia. A tarde toda eu escutei Blackbird dos Beatles. Eu não esperava a chuva, todavia ela veio. Eu sempre achei que havia uma relação entre os cantos dos pássaros e a parada da chuva, deve existir alguma semelhança
entre as aves e o arco-íris. Assim como há uma certa semelhança entre Deus e o Diabo. Depois do canto de hoje, nunca mais enxergarei as tempestades, sinto isso. A chuva não fez com que desistisse dos meus planos.
Fui até o Circo e só a lembrança do cheiro da lona me causa náuseas. Ela estava lá, não linda, mas necessária, ela ignorou minha presença, me tratou como um simples público pagante. Eu a perdôo, o ódio é próprio dos fracos. Eu só não podia me deixar intimidar, afinal, os tolos precisam pagar por seus erros. Olhei para o equilibrista e ele não pareceu menos louco do que eu, talvez a altura lhe proporcione uma importância que não tenha. Me aproximei, o vermelho do nariz do palhaço tomou conta de mim: “ah, ah, ah, o equilibrista se equilibra nas barbas da mulher, ah, ah, ah...”
A única coisa que me recordo é da barba comprida e macia e da faca brotando de sua barriga, não, não fui eu, eu juro, ela brotava como uma planta que desvirgina a terra (ou como um pássaro que atravessa os vãos da gaiola desvairado).
Agora, das grades da janela onde me encontro, apenas vejo grandes cipestres azuis...Trago no bolso uma foto de meu avô (ele também construía gaiolas). Ele tinha olhos pequenos como os dos passarinhos e como eles se assustava facilmente. Bastavam alguns passos mais fortes e ele se armava com a espingarda, embora, nunca houvesse balas dentro dela. Meu vô era um sonhador.
Quanto a mim, ainda construo gaiolas, mas não crio mais pássaros. Tudo que voa, pode de repente criar asas.
Márcia Barbieri
5 comentários:
Uma narrativa em que o tempo, asas e gaiolas aparentemente paradoxais caminham em paralelo.
O tempo passa inerente ao nosso desejo e as marcas adquiridas se impõem em nossa lembrança tal qual câncer que não se extirpa. Inserido neste tempo há o avô, que talvez quisesse reter seus melhores dias em uma gaiola, e a neta que ansiava por quebrar as cercas de sua própria existência. Por outro lado, “Quanto a mim, ainda construo gaiolas, mas não crio mais pássaros. Tudo que voa, pode de repente criar asas.” Assim como sua ex-mulher criou asas e voou para longe de vida prosaica. Se sai e uma gaiola e migra-se para outra sem ao menos nos darmos conta disso. Infelizmente o ser humano está cada vez mais só... e a gaiola é o seu único conforto, para fugir à realidade.
Lembrei-me desse poema:
da inutilidade de ter asas
o pássaro verde não é verde
e não tem cor
o pássaro que não é verde
é feito só de asas
e vive à solta numa gaiola
de porta aberta(Inominável)
Sua prosa é bem complexa. E, acima de tudo, belíssima!Fez-me pensar na vida e no arbítrio que há entre a liberdade e a prisão.
Beijinhos,
Dá pra se explorar muito mais coisas nessa prosa. parabéns!
Muito bom esse seu relato - levantou dentro de mim uma evocação estranha: O Homem de Alcatraz (Birdman of Alcatraz, 1962) , dirigido por John Frankenheimer.
Muito bom!
Mesmo.
E não sei mais o que dizer...
Bia,
como sempre só tenho a agradecê-la pelas leituras frutíferas.
Beijos
Klatuu
muito obrigada e verei o filme
beijos
Frankie
obrigada por estar aqui
Beijos
Marcia
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