DAMIÃO DE GÓIS
Damião de Góis nasceu perto de Alenquer, em 1502, e foi educado no paço desde 1511; recebeu a instrução de gramática, retórica e música, que era habitual no tempo e foi crescendo na atmosfera de amor do luxo e da aventura da corte de D. Manuel; podia, como tantos outros, embarcar para a África, a fazer o seu treino da guerra, depois ir na viagem do Oriente, em busca de glória e de fortuna; nisto, porém, havia no seu espírito um afastamento dos portugueses da época: interessavam-no mais as repercussões que os descobrimentos tinham na Europa e o contacto com o mundo novo que surgia na arte, na ciência, nas concepções religiosas; passou a Antuérpia, onde Portugal mantinha uma feitoria, e aí serviu, a partir de 1523, sob as ordens de João Brandão, feitor da Flandres; pouco depois nomearam-no escrivão; viajou, em seguida, como diplomata, pelos países do Báltico e pela Polónia e tratou de negócios políticos e comerciais com o rei da Dinamarca; sentindo que a instrução que levara de Portugal não era bastante sólida para poder entrar em íntimo contacto com os artistas, os reformadores, os humanistas, matriculou-se na Universidade de Lovaina, que frequentou durante algum tempo; os estudos são interrompidos por uma ida a Friburgo, onde trava relações com Erasmo: já conhecia Melanchthon e Lutero, mas ser bem acolhido pelo escritor que a Europa inteira escutava vinha consagrá-lo como um homem civilizado e dar-lhe possibilidade de tornar bem conhecida a acção dos portugueses; voltou a Portugal, por 1533, e foi nomeado tesoureiro da Casa da Índia; mas o ambiente da pátria era já um pouco difícil para quem se tinha habituado à amplidão de pensamento dos grandes espíritos europeus: não se tinha sabido coroar a obra dos navegadores com a obra dos artistas, dos homens de ciência e dos filósofos e toda a actividade se ia reduzindo ao negócio, ao culto da brutalidade guerreira e ao estreitamento das concepções religiosas; saiu do país logo no ano seguinte e esteve em Pádua a estudar, o que não o impediu de percorrer outras cidades da Itália; em Lovaina, para onde passou em 1539, casou com uma holandesa, Joana de Hargen, e bateu-se contra os franceses que tinham vindo cercar a cidade; em 1545, fixou-se em Portugal, como guarda-mor da Torre do Tombo e cronista do reino; a sua casa, onde havia boa mesa e boa música, era o ponto de reunião dos estrangeiros cultos de Lisboa; não deixou, naturalmente, de ser acusado à Inquisição, como adepto do luteranismo; apesar das diligências do P.e Jesuíta Simões Rodrigues, o processo não teve seguimento durante cerca de 25 anos: depois, deram-lhe ordem de prisão, meteram-no num cárcere, onde se cobriu de sarna e quase cegou, e, em 1573, condenaram-no a prisão perpétua; faleceu nos primeiros tempos de detenção, no convento da Batalha: fundado para comemorar o feito que libertara Portugal para a sua missão universalista, o mosteiro via morrer, menos de 200 anos depois, um homem que representava o ponto a que se teria chegado se o país se não tivesse detido na marcha iniciada.
Damião de Góis é efectivamente um humanista, não no estreito e insignificante sentido de pessoa que domina as línguas clássicas, mas no de alguém que aceita a ideia de possibilidade de progresso humano e a crê realizável pelo culto da liberdade de consciência e do espírito critico; confiante nos homens, ele tem o sentido da convivência, e a generosidade, a tolerância, a compreensão e o amor do diferente, que estão na base de toda a amizade pessoal e de toda a cooperação humana; ama verdadeiramente o seu próximo, protestante ou católico, etíope ou lapão; o seu patriotismo, bem expresso nos folhetos de propaganda que publicou, não exclui um anseio universalista, antes o supõe, visto que a sua admiração por Portugal vinha exactamente do trabalho que os seus marinheiros tinham feito para um maior entendimento entre os homens; vê, de resto, os descobrimentos como uma empresa humana, baseando-se em certezas humanas e dirigindo-se a objectivos humanos; nada aparece nele de mesquinho ou de separador nas concepções religiosas: por aqui, segue Erasmo e entende, como ele, que, depois da revolução científica do final do séc. XV e princípios do séc. XVI, o mundo vai por novos rumos e a religião se tem de modificar, num sentido de maior largueza e elevação; e, ante o seu espírito conciliador e inimigo da violência, tanto lhe parecia condenável a revolução brutal de Lutero como a opressão despótica de Roma; as artes, sobretudo a pintura e a música, eram também para Damião de Góis uma linguagem em que Deus se exprimia e pela qual era possível chegar até Deus: admirava os quadros de Dürer, de Bosch, de Metsys, e ele próprio compõe coros que entoa com os amigos na sua casa de Lisboa; neste homem tudo se dirige ao entendimento com o seu semelhante, até a crítica que exerce sobre as suas próprias opiniões, a moderação com que as exprime, a atitude de dúvida que mantém, mesmo perante o que lhe parece mais seguro. E foi verdadeiramente um desastre para a civilização da nossa Europa que uma nação inteira, depois de ter posto em prática todos estes princípios, no que respeitava à acção, se tivesse voltado a destruir sistematicamente tudo o que apontava como tendente a implantá-los na esfera do pensamento.
Como escritor, Damião de Góis manejou igualmente o português e o latim, e ambos bastante mal. O seu estilo é imperfeito, cheio de asperezas e de construções defeituosas; por outro lado, falta-lhe o poder de imaginação histórica de um Fernão Lopes ou de um Oliveira Martins; mas os seus livros valem pela imparcialidade e pelo tom crítico, que tantos ódios e oposições lhe suscitaram no tempo, e que só voltam a aparecer entre nós com a renovação intelectual do séc. XVIII e, depois, com a história de Herculano.
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