TOLSTOI
Tolstoi, que nasceu em Iasnaia Poliana, em 1828, e morreu em Astapovo, em 1910, pertencia a uma das mais nobres famílias da Rússia; os parentes mais próximos eram extremamente religiosos, mas consideravam que uma vida pura, o amor do próximo e a actividade social eram formas de culto muito mais elevadas do que os ritos quase mecânicos das igrejas ortodoxas; desde muito cedo teve Tolstoi a noção de que o destino do homem consiste em aperfeiçoar-se, em procurar ser, de dia-a-dia, mais compreensivo e fraternal; os estudos interessavam-no pouco pelo que apenas lhe comunicavam de saber, muito pelo alargamento de espírito que provocavam. O encontro com as doutrinas de Rousseau foi decisivo para o adolescente: o amor da humanidade e, para além da humanidade, do universo inteiro, tinha de ser o objectivo do homem que se estava formando; mas, para que esse amor pudesse resplandecer e iluminar com a sua chama toda a densa treva do mundo, era necessário que ele próprio se melhorasse, que vencesse dentro em si as forças poderosas que o arrastavam para o egoísmo, para a violência, que repugnavam ao seu ideal; a natureza a domar era, porém, rebelde: Tolstoi nascera com agudos, despertos sentidos para tudo que no mundo existe; sentia-se fundamente irmão dos animais e das árvores, a sua compleição, fremente de seiva, acedia, como a deles, a todo o apelo natural; por outro lado, o mundo aristocrático em que vivia a cada momento lhe oferecia ocasião de satisfazer os seus fortes instintos; a luta entre o ideal e a matéria que tinha a modelar esgotava-o em crises violentas: mal se metera ao caminho do bem, já o sensual o traía e o lançava no desespero de se sentir vencido. Depois, decerto queria amar os homens e percebia que era esse o grande sentido da sua vida: mas era bastante inteligente e bastante observador para lhes notar os defeitos, os ridículos, as pequenas e as grandes misérias; para os poder amar, tinha de lhes supor qualidades não desenvolvidas, fontes de beleza que a vida artificial que levamos não deixava brotar; e manter essa crença, num mundo em que toda a aparência é contra ele, revelava-se, na verdade, tarefa bem difícil.
E este drama de Tolstoi que faz a sua grandeza, é ele que palpita no todo da sua obra e da sua vida, desde as guarnições do Cáucaso e de Sebastopol, em que é soldado e odeia a guerra, até a vida em Iasnaia Poliana, com a sua cabana de camponês instalada numa sala do palácio; Tolstoi teve a vontade de santificação dos maiores ascetas, mas teve também, a mais do que eles, o sentido da complexidade e do encanto magníficos da vida; e jamais conseguiu encontrar a ligação, talvez impossível, entre o seu anseio de pureza moral e a sua larga vibração de artista. Em A Guerra e a Paz, na Ana Karenina, na Ressurreição, nas novelas, nos ensaios, é a mesma batalha entre o ideal da vida justificável e o amor da vida completa; o contraste entre o seu temperamento sensual e orgulhoso e as suas ideias fê-lo sofrer e levou-o a fazer sofrer os outros; tudo, porém, foi nele sincero e nobre, mesmo nos momentos em que a aparência era de perfeita hipocrisia; em todas as horas se bateu contra o que de mau sentia em si próprio e nos outros — as atitudes dogmáticas, a intolerância, o desprezo dos homens, o desacordo entre doutrinas e actos; atacou os sacerdotes que traíam Cristo e os revolucionários que não tinham a menor vibração de generosidade e de amor; apontou como inimigos da felicidade comum os literatos para quem a arte vale mais do que o homem, e os sábios que se fecham, por comodidade e egoísmo, nos seus casulos científicos; revolta-se contra a brutalidade suprema das execuções e da guerra; pregou a não-resistência ao mal como a única forma de modificar as relações entre os homens; pôs sempre em cada uma das suas campanhas o máximo de ardor, de convicção, de sinceridade, de eloquência; e, ao contrário do que aconteceu na vida, em tudo o que escreveu os recursos do artista, os seus dons de observação, a capacidade de construção psicológica, a simplicidade de linguagem, serviram admiravelmente as ideias do homem.A narrativa que se vai ler faz parte de um ciclo de histórias populares em que se contam, por exemplo, O sapateiro Martinho, Os dois velhos, Ivan, o louco, Os três eremitas, O tambor vazio; a família de Tolstoi e os seus amigos mais literatos acharam que a tarefa era indigna dum tão grande artista; mas o escritor sentiu que fazia verdadeira obra de arte, que nos contos ressoava a voz eterna do povo e o movia um alto desígnio de educação dos homens; toda a literatura desaparecia, para que a vida plenamente, rudemente, se mostrasse: o drama de Pahóm é apresentado com toda a simplicidade e toda a dureza, sem nenhuma espécie de falso sentimentalismo, nem de invectiva; e é, por isso mesmo, das páginas mais vibrantes que se têm escrito sobre o poder corruptor, nas nossas naturezas vulgares, da propriedade e da riqueza.
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