ARRIANO, MANUAL DE EPICTETO (VI)
Quando alguém te fizer mal ou o disser de ti, lembra-te que cuidava que fazia bem naquilo e assim lho pareceu; porque não pode ser que ele siga o teu entendimento, senão o seu. E se ele julga mal de tuas coisas, sua é a perda, pois que vive enganado. Porque, se um julga a verdade por mentira, não é por isso ofendida a verdade senão o que a não conheceu. Com esta consideração sofrerás com o ânimo o que disser mal de ti e a tudo dirás: — «Assim lhe pareceu a ele».
Todas as coisas têm como duas asas por onde se tomam: uma tolerável e outra insofrível. Se teu irmão te fizer alguma injúria não tomes a coisa por aquela parte que é injúria, que essa não é tolerável, mas toma-a pela parte que é irmão, que se criou contigo, e por esta parte sofrê-lo-ás.
Não são boas consequências estas: Eu sou mais rico que tu, logo sou melhor; eu sou mais eloquente que tu, logo sou mais virtuoso. Estas outras sim, que são boas: — Eu sou mais rico que tu, logo a minha fazenda é mais que a tua; eu sou mais eloquente que tu, logo a minha oração é mais elegante. Mas tu não és fazenda nem oração.
Lava-se um depressa, não digas que se lavou mal, senão depressa; bebeu alguém muito vinho, não digas que bebeu mais do que o necessário, senão que bebeu muito, porque, antes que saibas bem o que passa, como sabes que foi aquilo demasiado? Porque, doutra maneira, virás a dar por tempo em imaginações falsas, julgando as coisas que vês diferentemente do que elas são.
Não te mostres sábio e filósofo, nem fales entre ignorantes muito de preceitos e regras, como no banquete não trates de como se há-de comer, mas come como convém. E lembra-te que Sócrates em toda a parte fugia à ostentação, de tal modo que, se alguém lhe perguntava por algum sábio ou filósofo com quem se aconselhar, levava-os a outro. Tampouco curava de ser tido em pouco.
Assim que, se alguma vez entre ignorantes vier a prática a tratar de algum preceito, o mais do tempo está calado, porque é muito perigoso deitar pela boca o que ainda não está bem digerido. E se alguém, vendo-te calado, disser que não sabes nada e tu não te perturbares, sabe que vai a coisa bem principiada. Porque as ovelhas não mostram logo a seus pastores quanto comeram cada dia, mas, digerido bem dentro de si o que comeram, fora depois o mostrarão no leite e na lã. Assim, tu não entornes logo muitas palavras com os ignorantes; mas com obras mostra que tens madura consideração.
Se vives sóbria e temperadamente, não te ensoberbeças por isso e, se não bebes vinho, não digas logo com qualquer ocasião que bebes água, porque, se queres exercitar-te em trabalho, seja para teu proveito e não para te mostrares aos outros, como os que abraçam as estátuas em público. Nem tampouco, se alguma vez, com grande sede, tomares um trago de água na boca e a tornares a deitar fora, não digas logo que não bebeste.
Condição e sinal é de homem plebeu e vulgar nunca esperar de si mesmo o dano nem o proveito, mas das coisas de fora. Condição e mostra clara é de um filósofo e sábio de si mesmo esperar todo o proveito ou dano.
Os sinais de quem aproveita são: não repreender ninguém, não louvar ninguém, não culpar ninguém, não acusar ninguém, nem se gabar a si mesmo, tendo para si que é alguma coisa ou sabe alguma coisa. E quando lhe impedem alguma coisa ou lhe vão à mão, a si mesmo põe a culpa; quando alguém o louva, consigo mesmo se está rindo dele; se o repreendem, não se defende, mas como quem ainda está fraco da doença, anda com cuidado e temor não torne a recair, não estando ainda bem firme na saúde; todos os seus desejos são das coisas que dependem dele mesmo e o que foge são as coisas que repugnam à natureza das que estão em nossa mão; o que deseja, tudo é tibiamente e não lhe dá nada de ser tido por néscio ou ignorante; finalmente guarda-se de si mesmo como de um inimigo que o anda espreitando.
Se alguém se gloria por entender e explicar bem os livros de Crisipo[1], diz a ti mesmo: — «Se Crisipo não escrevera com estilo escuro, não tivera Este de que se gloriar. Mas eu, que procuro? De entender a natureza e segui-la. Pergunto logo: — Quem é o que isto ensina? Ouço dizer que Crisipo. Vou-me a Ele, mas não entendo os seus livros. Busco quem mos explique. Até aqui nenhuma coisa destas é grande. Como achar mestre que mos explique, o que fica por fazer é usar dos preceitos, e só isto é a importância; porque, se só parar na explicação e compreensão deles, fico sendo um gramático em lugar de filósofo, só com esta diferença dos outros que eles explicam Homero e eu Crisipo. E quando alguém me pedir que lhe explique Crisipo, ser-me-á vergonha não responder com as obras àquela doutrina que ensino.»
Estas coisas hás-de guardar como uma lei inviolável e que sem grande pecado se não pode deixar de observar; e não cuides de nenhuma coisa que de ti digam, porque isso não está em tua mão.
Até quando hás-de demorar o lançar mão destas coisas excelentíssimas para ti, e o resolveres-te a de nenhuma maneira violar os termos da razão? Ouviste estes preceitos que eram para receber e recebeste-os? Que outro mestre esperas agora para que com sua vinda te emendes? Não és já mancebo, mas homem de idade madura. Assim que, se desprezas estas coisas e as não pões por obra, mas a uma detença ajuntas outra e a um propósito outro e guardas a determinação para um dia depois, não vês que isso é não aproveitar nada e que viverás e morrerás como um homem vulgar e ignorante? Portanto, toma a vida que convém a um homem que quer aproveitar e ser perfeito; o que te parecer o melhor e mais acertado, como uma lei inviolável. E quando se oferecer alguma coisa trabalhosa ou suave, honrosa ou afrontosa, lembra-te que estás em perigo e que entras em batalha que se não pode dilatar para outro tempo, e que do primeiro encontro hás-de sair vencido ou vencedor. Assim, Sócrates veio a ser o que foi com sempre se melhorar e não obedecer a nada senão à razão. E tu, ainda que não sejas Sócrates, assim deves viver como quem o quer ser.
O primeiro e mais principal lugar na filosofia ou sabedoria é o que trata dos preceitos, como de não mentir; o segundo o que trata das razões, como e porque se não há-de mentir; o terceiro saber o porque aquelas razões são boas, como e porque é demonstração, que coisa consequência, que coisa argumentar que seja o verdadeiro ou o falso. Pelo que o terceiro lugar é necessário pelo segundo, o segundo pelo primeiro e o mais necessário de todos e em que se há-de parar é o primeiro. Nós fazemos muito ao contrário, porque no terceiro lugar fazemos todo o fundamento; o primeiro totalmente não fazemos conta dele; e assim em efeito mentimos, mas nas razões por que se não há-de mentir estamos muito versados.
Em qualquer coisa que empreenderes, estas coisas hás-de desejar e pedir: — «Encaminha-me, ó Júpiter, e tu, Destino, para aquele fim que me tendes destinado, que eu o seguirei de boa-vontade, porque, se não quiser, serei culpado ; e mais, havê-lo-ei de seguir ainda que não queira».
O que se acomoda à necessidade é sábio e entendido nas coisas.
[1] Um dos mestres do estoicismo (III séc. a. C.).
1 comentário:
Ah, muito bonito este manual de Epicleto.
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