ARRIANO, MANUAL DE EPICTETO (IV)
Estes cuidados não te dêem nenhuma pena: — «Viverei sem honra, não me terão em conta» — porque, se a falta de honra é mal, por nenhuma via virás mais depressa a ele que pelos vícios. E teu ofício, porventura, que tenhas grandes honras ou que te convidem aos banquetes? Não por certo. Onde está logo a desonra e o ser tido em pouco? Quem não sabe que só naquelas coisas que estão em tua mão e por elas em tua mão está ser quão honrado quiseres? Dirás que sim: mas que sendo-o não poderás aproveitar aos amigos. Como entendes isto? Que não lhe poderás dar dinheiro nem fazê-los cidadãos romanos? E quem te disse a ti que isto é do que está em nossa mão e não em poder alheio? Como pode um dar a outro o que não tem para si? Dizem eles: —«Ganha-o tu para que nós o tenhamos». Se eu o posso ganhar sem perder a vergonha, a verdade e a grandeza de ânimo, ensinai-me como, e ganhá-lo-ei; mas se vós quereis que perca eu meus bens próprios para vos adquirir os que não são verdadeiramente bens, atentai que sois injustos e temerários. Que quereis antes, dinheiro ou um amigo modesto e sincero? A isto logo me ajudai e não me peçais coisas por donde eu perca aquelas. Está bem isso, dizem eles, mas não aproveitas nada à tua Pátria. Em que consiste o aproveitar-lhe? Não farás nela nenhuns edifícios públicos para o bem comum, pórticos, ou banhos. E isto que é? Também não tem pelo sapateiro armas, nem pelo ferreiro sapatos; e não será pouco que cada um cumpra bem com seu ofício. Não te parece que seria muito proveito para a Pátria se lhe desses um cidadão virtuoso e modesto? Sim, por certo, pois assim não serás à tua Pátria inútil. «Que lugar terei, logo dirás, na República?» Digo que o que puderes alcançar sem perder a inteireza e vergonha. E se por esta via não aproveitares à tua Pátria, como lhe poderás aproveitar sem vergonha e sem verdade?
Se preferirem alguém a ti no banquete ou na cortesia, ou em lhe pedirem conselho, e se tens estas coisas por boas, dá os parabéns àquele a quem isto aconteceu; se as tens por más, folga que não caíste nelas. E lembre-te que, como tu não faças aquelas coisas por onde se alcançam as que não estão em nossa mão, que não pode ser que tas dêem. Porque, como há-de valer tanto o que nunca visita, como o que sempre anda visitando? e o que acompanha e o que louva, como o que não louva nem lisonjeia? Injusto serás e desarrazoado, se, sem haver primeiro contribuído aquelas coisas pelas quais estoutras se vendem e granjeiam, quiseres que tas dêem de graça. Vejamos por quanto se vendem umas alfaces? Ponhamos, por caso, por um dinheiro. De maneira que o que der o dinheiro levará as alfaces e tu, não dando nada, irás sem elas. Nem por isso hás-de cuidar que és de pior sorte que o que as levou, porque se aquele fica com as alfaces, tu ficas com o dinheiro que não deste. Desta própria maneira passa este outro negócio. Não te chamaram para algum banquete nem tu deste o por que se vende o ser chamado; vende-o o que o dá por adulações, louvores e serviços. Portanto, se estas coisas te parecem bem, hás-de dar o preço pelo qual se vendem; não o querendo dar e mais querendo que tas dêem serás tido por injusto e avaro e de pouco saber. Pois como não te fica nada em lugar do banquete? Sim, por certo, não louvaste a ninguém contra tua vontade, nem sofreste a soberba e insolência do senhor da casa quando entravas nela.
A tensão da natureza se pode conhecer naquelas coisas em que todos convimos, e em que entre nós não há diferença. Ponho, por exemplo: se o criado do teu vizinho quebrou um vidro ou coisa semelhante, logo se diz: — «Coisa é isto ordinária». — Adverte logo que quando se quebrar alguma coisa que seja tua, que sejas o mesmo que foste quando se quebrou a que era alheia. E assim, passa daqui às coisas maiores. Morreu o filho do outro ou a mulher, não há quem não diga que àquilo estão sujeitos todos os humanos; mas, se ao mesmo que diz isto, lhe acontece alguma coisa destas logo suspira e diz que é mofino; e houvera de lhe lembrar de ter o mesmo juízo nisto que teve quando ouviu que acontecera a outrem.
Assim como o alvo não se põe para errarem, senão para acertarem, assim também na natureza não há nenhuma coisa que de si seja má ou feita para mal. Se alguém te entregasse a um que acaso passasse pela rua para que te tratasse mal à sua vontade, com razão te indignarias contra ele; pois não te envergonhas de entregar tua vontade e entendimento ao primeiro que se oferece para que, com uma má palavra que te diz, te perturbes todo e te descomponhas? Portanto, quando empreenderes alguma coisa olha bem o que precede e se segue; porque doutra maneira começarás com alegria não olhando os inconvenientes que se podem seguir; e depois achando-te com eles ficarás corrido e afrontado.
Queres ser vencedor nos jogos olímpicos? E eu também, em verdade, que é coisa honrosa; mas olha primeiro o que é necessário antes e se segue depois; e assim põe-te a isso, se te parecer bem. Haverás de pôr-te em dieta e comer muitas coisas que te não sabem bem, guardar-te de viandas delicadas a certo tempo, exercitar-te por calma e por frio, não beber senão por medida assim água como vinho, enfim entregar-te nas mãos do mestre da luta como nas de um médico. Depois disto vir ao combate e porventura desconjuntar uma mão ou uma perna, beber muito pó e às vezes darem-te muitas pancadas e depois de tudo ser vencido. E se, consideradas todas estas coisas, todavia te contenta entrar no combate, entra; doutra maneira, entrando sem consideração, farás como os meninos, que ora lutam, ora tangem flautas, outra vez esgrimem, outra lhes parece bem tanger trombeta, outra representar tragédias. Assim tu, ora lutador, ora esgrimidor, depois orador, finalmente filósofo e nenhuma coisa destas de propósito nem com todo o ânimo. Mas, como um macaco, andarás arremedando tudo o que vires, tomando uma coisa e deixando outra, porque nenhuma daquelas coisas empreendeste com consideração, mas temerariamente seguiste a leviandade do apetite. E assim há muitos que vendo algum filósofo e ouvindo dizer: — «Quão bem disse Sócrates! Quem pudera falar como ele!» logo também querem ser filósofos.
Todos os serviços que devemos a alguém se hão-de regular pela obrigação que lhe temos; como a teu pai: obedecer, ter cuidado dele, ceder-lhe em tudo, se te disser más palavras, e, se te castigar, sofrê-lo. Dirás, porventura: — «É um mau homem». A obrigação da natureza não é a bom pai, senão a pai. Faz tu o que estás obrigado para com ele e não olhes para o que ele faz, mas atenta para o que hás-de fazer para viver bem e conforme à razão, porque, se tu não quiseres, ninguém te ofenderá. Só serás ofendido quando cuidares que o és. E desta maneira entenderás a obrigação que tens ao vizinho, ao teu concidadão, ao soldado, ao capitão, tendo conta com o respeito que a cada um se deve.
2 comentários:
Grande texto,grande lição de cidadania! Se todos tivéssemos essa sabedoria! "Nem por isso hás-de cuidar que és de pior sorte que o que as levou, porque se àquele fica com as alfaces, tu ficas com o dinheiro que não deste."
Há muita gente querendo comer alface,mas há poucas dispostas a tirar o dinheiro do bolso".
Parabéns à direção.
Abraço
Marcia Barbieri
Espero que muitos leitores apareçam e sigam os conselhos desse sábio.
abraço
Daniel Lopes
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