ARRIANO, MANUAL DE EPICTETO (III)
De nenhuma coisa digas que a perdeste, senão que a tornaste a seu dono. Morreu-te o filho? que foi isso senão torná-lo a quem to deu? Tomaram-te a fazenda? também é torná-la a cujo era; o que ma tomou foi um mau homem. Que te vai a ti em que quem ta deu ta peça pelo meio que ele quiser? Enquanto te deixar ter, aproveita-te dela como coisa que não é tua, como faz o caminhante na estalagem.
Se queres aproveitar, deita fora de ti estes pensamentos: «Se não olho por minha fazenda, não terei de que viver; se não castigo o moço, far-se-á velhaco». Porque mais vale morrer de fome, livre de temores e moléstias, que muito rico com o ânimo sempre perturbado. E menos mal é que seja o moço qual for, que seres tu infeliz.
Começa pelas coisas pequenas. Entornou-se um pouco de azeite; furtaram-te algum vinho; deita logo conta que, por tanto como aquilo, se compra a quietação e o sossego do ânimo, e que de graça não se alcança nenhuma coisa. Quando chamares um moço, cuida que pode ser que te não ouve; e, ainda que venha, que não fará o que queres à tua vontade; e não é razão que ele valha tanto que esteja em sua mão poder-te perturbar quando quiser.
Se quiseres que tua mulher, ou filhos, ou amigos, sejam sempre prósperos ou vivam para sempre, és de pouco saber, pois pretendes que o que não está em tua mão esteja nela e seja teu o que é alheio. Assim, também és ignorante se queres que o moço não erre, porque isso é querer que o vício não seja vício, senão outra coisa. Portanto, se quiseres alcançar sempre o que pretendes, pretende o que podes.
É senhor das coisas àquele que em todas as que quer ou não quer tem poder para alcançá-las, ou para livrar-se delas se quiser. E assim, o que quiser ser livre não queira nem aborreça o que está em mão alheia, porque doutra maneira forçado lhe será servir e sujeitar-se.
Lembra-te que nesta vida assim nos havemos de haver como em um banquete. Se algum prato anda pela mesa para que tomem dele, quando passar diante de ti toma com modéstia o que convier; se passou, não detenhas, e, se ainda não chegou, não estendas muito braço nem o desejo, mas espera até que se ponha diante. Assim procede com os filhos, assim com a mulher, com as riquezas e ofícios, e desta maneira virás a ser digno de ser convidado dos Deuses. Mas se que te oferecerem não tomares e o tiveres em pouco, não semente serás convidado dos Deuses, mas serás companheiro com eles no governo de seu mando.
Lembra-te que nesta vida és um actor de uma comédia, tal qual ao autor dela parecer; se breve, breve; se longa, longa. Se quiser que representes um pobre, faz por representar aquela figura o melhor que puderes e assim se for a de um manco, ou de um príncipe, ou de um plebeu, porque o teu ofício é representar bem a figura que te derem; o escolher qual há-de ser é de outrem.
Se o corvo com o seu grasnar te anunciar algum mau agoiro, não faças caso disso nem te alteres; mas diz contigo mesmo: «Este a mim não me prognostica nenhuma coisa senão ou ao corpo, ou à fazendinha, ou à honrinha, ou aos filhos, ou à mulher; para mim tudo será próspero se eu quiser, porque de qualquer coisa que suceda posso eu tirar proveito se quiser.»
Nunca serás vencido em nada, se nunca entrares em contenda em que a vitória não esteja na tua mão.
Se vires alguém muito honrado ou poderoso, ou por qualquer outra via engrandecido, olha que não te deixes levar daquelas aparências e o tenhas por bem-aventurado; porque, se a importância e essência do sossego se puser no que está em nossa mão, nem a inveja nem a emulação terão lugar em nada, e tu mesmo, antes que ser imperador, cônsul, nem senador, tomarias ser livre e senhor de ti mesmo, para o que há um só caminho que é o desprezo de todas as coisas que não estão em nossa mão.
Adverte bem que o que te diz más palavras ou põe em ti as mãos, não é, realmente, o que te ofende, senão a imaginação que tu tens de que aquelas coisas são ofensas. E assim, quando alguém te agravar, sabe que a opinião tua é a que te agrava. Pelo que, procura de não consentir com as coisas que vês de fora, porque, se deres tempo e te detiveres em consentir, facilmente serás senhor de ti.
Traz sempre diante dos olhos a morte, desterros, e tudo o que se tem por trabalhoso, e mais que tudo a morte. E com isto nem terás nenhum pensamento baixo, nem desejarás nada com muita força.
Se desejas de empreender o estudo da Sabedoria, aparelha-te, que logo se hão-de rir de ti, zombar e dizerem: — «Tão depressa se fez este filósofo?; donde lhe veio esta carranca?» — E carranca não a tenhas, mas, naquilo que te parecer que é o melhor, assim está firme, para não te moveres daquele lugar como se um Deus te pusera nele; e tem por certo que, se permaneceres no mesmo estado, os que primeiro zombavam de ti depois se admirarão; mas se te deixas vencer deles, com dobrado motivo zombarão de ti.
Se alguma vez acontecer que, saindo fora, queiras contentar a alguém, entende que caíste do estado em que estavas. Baste-te em todas as coisas ser sábio; e se desejas também de o parecer, contenta-te de o parecer a ti mesmo.
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