ARRIANO, MANUAL DE EPICTETO (II)
Das coisas que há no mundo, umas estão em nossa mão e outras não. Em nossa mão está a opinião, a suspeita, o apetite, o aborrecimento, o desejo e, numa palavra, todas as obras que são nossas. Não estão em nossa mão o corpo, a fazenda, nem a honra, nem o senhorio, nem, com efeito, nenhuma das que não são obra nossa.
As coisas que estão em nossa mão — de sua natureza são livres e senhoras, sem impedimento, nem embaraço. E as que não estão em nossa mão de si são fracas, servis, embaraçadas e sujeitas.
Olha que, se tiveres por livre o que de sua natureza não o for, e por teu o que em efeito não o é, que haverás de embaraçar-te, turvar-te, lamentar-te e queixar-te dos Deuses e dos homens. Mas, se só o que é teu tiveres por tal, e por alheio, como o é, o que não é teu, não haverá nunca quem te faça força, nem te impedirá ninguém; a ninguém acusarás; de ninguém te queixarás; nenhuma coisa farás contra tua vontade; não terás nenhum inimigo; ninguém te fará mal; nem receberás nenhum dano nem perda.
E, assim, se para negócio tão grave como este te dispões, cuida que não deves começá-lo não estando para isso, nem ainda meãmente aparelhado, senão que é mister deixar algumas coisas de todo e outras suspendê-las por agora. Porque, se cuidas alcançar sossego de ânimo e mandar e enriquecer-te juntamente, perderás isto por ir atrás do primeiro, e ficarás de todo sem aquilo por cujo meio se alcançam a felicidade e liberdade perfeitas.
Quando quer que se te represente alguma imaginação com veemência, tem por costume de dizer: «Isto é imaginação e não com verdade o que parece». Examina-a bem pelas regras que aqui tens, principalmente por esta: se é das coisas que estão ou não estão em teu senhorio. E se é das coisas que não estão nele, diz logo que a ti não te pertencem.
Em tudo o que se estima, ou por contentamento ou por proveito, considera bem de que qualidade seja e começa por coisas muito pequenas. Folgas muito com algum vaso; lembra-te que folgas com uma coisa quebradiça, e não te dará pena se se quebrar. Amas a mulher ou o filho, faz de conta que amas a uma coisa mortal e não te lastimarás quando morrer.
Quando quiseres fazer alguma coisa, põe bem diante dos olhos que coisa seja o que empreendes. Queres ir a banhar-te; cuida no que se faz de ordinário nos banhos públicos; os que se molham tiram uns aos outros do lugar, zombam e furtam os vestidos; lembrado disto, começarás a obra sem perigo, com dizer: «O que eu aqui pretendo é lavar-me e conservar-me no propósito que devo, e o mesmo em qualquer outro negócio». E, assim, se algum embaraço sobrevier no lavar-te, terás a ponto o dizer: «Eu não somente quis isto, mas ainda manter-me no propósito que devo conforme à natureza, o que não poderei fazer se me inquietar com o que aqui suceder».
Perturbam aos homens não as coisas, senão a opinião que delas têm, como a morte, na qual não há que temer, porque, se o houvera, também Sócrates temera; mas a opinião que da morte se tem a faz espantosa. Portanto, quando formos impedidos de alcançar alguma coisa ou estorvados de nossos apetites, não culpemos ninguém senão a nós mesmos, porque tudo é fruto das opiniões que temos. Porque é de homem ignorante acusar outrem do trabalho próprio; de quem já começa a aproveitar acusar-se a si mesmo; do já aproveitado nem a si, nem a outrem.
De nenhuma excelência alheia te engrandeças. Se um cavalo, prezando-se de si mesmo, dissesse: — «Sou formoso» —, coisa fora tolerável; mas tu, quando te ensoberbeces, dizendo: — «Tenho um cavalo formoso» — sabe que te honras do teu cavalo ser bom. Pois que é em efeito o que é teu? O uso das coisas que vês, pelo que, quando delas usares como deves e a natureza pede, então te gloria; porque então te poderás louvar com razão de algum bem teu.
Como quando se navega, se a nau toma porto e sais em terra a tomar água, de caminho podes colher conchas e marisco; mas cumpre ter o sentido na nau e estar alerta, olhando não te chame o Mestre a recolher e seja necessário deixar tudo, porque não te metam na nau atado como ovelha; assim se, enquanto viveres, em lugar de conchas e mariscos te derem mulher e filho, não será isto impedimento, mas, se o que governa a nau te chamar, corre presto à nau e deixa tudo, sem tornar a olhá-lo; e se és velho não te apartes muito do navio porque não canses muito quando te chamarem.
Não queiras que as coisas que sucedem sejam sempre à tua vontade, mas, se queres acertar, quere-as como elas vierem. A doença, impedimento é ao corpo, mas não à tua formação, se tu mesmo o não quiseres; o ser manco, impedimento é dos pés, do teu intento não. E assim, se em tudo o que suceder isto fizeres, esta conta acharás, que as coisas serão impedimento a outras, mas não a ti.
Em qualquer coisa que se oferecer, torna sobre ti e considera as forças que tens para te valer contra aquilo que se te oferece. Se vires um gentil homem, ou uma gentil mulher, para isto acharás a virtude da continência; se algum trabalho te vier, acharás o suportá-lo; se alguma injúria, a paciência; e acostumando-te desta maneira não te levarão as coisas que vires após si.
2 comentários:
À funda sabedoria, a bem revelar o sentido do apreço de Agostinho pela filosofia clássica, junta-se a altura do Português do século XVI! Singular entretém que arranjaste para as férias... Com Lisboa liberta de multidões e chatos, com uns cigarritos, as manhãs e os entardeceres, por vezes até terás a sensação que mesmo para os ateus existem paraísos... ;)
Ao fim e ao cabo, o paraíso último será sempre a Roma Eterna, pagã e luminosa.
Nem mais! Que ninguém lamente a minha sorte... Tenho descoberto bastantes pérolas. E aprendido a admirar o Agostinho ainda mais: o tipo até sobre as abelhas escreve sublimes textos...
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