A VIDA E A ARTE DE REMBRANDT
A modificação que se tinha dado na vida e na maneira de Rembrandt não tinha agradado aos seus compatriotas; já a Ronda da Noite suscitara as críticas e os guardas que não tinham ficado no primeiro plano queixavam-se duramente de terem sido roubados pelo artista; a cada novo quadro que Rembrandt pintava o desagrado manifestava-se mais forte: os modelos não se reconheciam nos retratos, porque Rembrandt, para lá das semelhanças exteriores, preocupava-se com a verdade psicológica e os revelava diferentes do que se mostravam a si próprios e aos outros; os alunos fugiam também, pouco seduzidos por aquele mestre que não parecia muito dentro dos gostos do mundo e os levava por caminhos em que o dinheiro não surgiria facilmente. Por outro lado, as almas puritanas, os exemplares frequentadores do templo, aqueles que sabiam pôr o vício dentro das fórmulas, censuravam a vida do pintor, as suas relações com a criada e faziam o possível, o que efectivamente conseguiram, para que a autoridade retirasse a Rembrandt o direito de ser tutor do filho, tanto mais que a situação financeira de Rembrandt não parecia excelente; de facto, depois dos anos de febril especulação, da breve idade de ouro que todos tinham julgado eterna, havia urna crise económica que já levara à falência muitas das grandes casas da cidade; o credor de Rembrandt, que nunca fizera qualquer exigência pediu-lhe que lhe pagasse o que faltava, para liquidar a dívida e Rembrandt teve de pedir dinheiro emprestado; os novos credores mostraram-se mais duros do que o outro e a especulação de bolsa e de obras de arte com o pintor procurou salvar-se revelaram-se infelizes; declararam-lhe falência, penhorando-lhe tudo quanto possuía na casa em que amara Saskia e Hendrickje e em que julgava por momentos ter resolvido os problemas que o atormentavam; teve que assistir à venda pública, a baixo preço, de todas as preciosidades que coleccionara com tanto entusiasmo e tanta generosidade; ninguém entendia o que fizera, a dureza de alma daqueles homens revelava-se claramente; havia mesmo alguma coisa mais do que a simples cobiça: era uma vingança de medíocres sabre o homem de génio, um desespero de humilhados que finalmente se podiam manifestar; os dotes de Rembrandt tinham-no elevado acima dos outros nos domínios do pensamento e da arte; agora, podendo surpreendê-lo no terreno que era deles, não perdiam a ocasião de lhe mostrar quanto valiam: todos vieram, todos devassaram a casa de vinte anos de amor e de trabalho, todos comentavam, todos sorriam, todos ofereceram com desdém os lanços baixos; só Hendrikje e Titus se conservaram a seu lado, e a lembrança de Saskia; quando tudo acabou, Rembrandt tinha sofrido a experiência que lhe permitiria pintar o Retrato de Cristo, o Cristo de 56, o cadáver da segunda anatomia; a dor agrava-se para além dos limites da melancolia sonhadora e de certo modo agradável: é a brutalidade de uma vida que se não compreende, da morte que destroça os corpos e lhes rouba a harmonia estatuária, da oposição, voluntária ou não, a tudo o que represente inteligência, amor, superioridade.
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