O pedinte, um africano alto, sujo, cabelo e barba desgrenhados, a meio dos 30, atravessou a rua em nossa direcção. Estávamos a conversar no passeio e calámo-nos e ficámos a olhar para ele. O homem parou à nossa frente, levantou e uniu as mãos à altura do peito, como se fosse rezar, e abriu a boca: – «Boa noite, por favor não me batam, sou um desgraçado, poderiam dar-me alguma coisa?» – disse isto num Português fluente, comovido e elegante. Os outros olharam para mim. Levei a mão ao bolso e de lá saiu 1 euro e 20 que larguei nas suas mãos escuras e trémulas.
– «Deus vos abençoe!» – e partiu à sua vida. Ou morte.
Pela miséria dos dias e das noites, 120 cêntimos é o tarifário da minha piedade, 120 cêntimos é o preço do meu coração, da merda dos Cursos que tirei e o valor das línguas que falo e da sabedoria e da soberba a que cheguei, 120 cêntimos é o salário de puta dos meus caprichos com a roupa!
Porque seria suposto que batêssemos naquele homem? Porque somos brancos, trajamos de negro, temos longos cabelos e acreditamos representar uma qualquer glória morta do passado dos Europeus??
Deus me perdoe, se ainda for possível.
– «Deus vos abençoe!» – e partiu à sua vida. Ou morte.
Pela miséria dos dias e das noites, 120 cêntimos é o tarifário da minha piedade, 120 cêntimos é o preço do meu coração, da merda dos Cursos que tirei e o valor das línguas que falo e da sabedoria e da soberba a que cheguei, 120 cêntimos é o salário de puta dos meus caprichos com a roupa!
Porque seria suposto que batêssemos naquele homem? Porque somos brancos, trajamos de negro, temos longos cabelos e acreditamos representar uma qualquer glória morta do passado dos Europeus??
Deus me perdoe, se ainda for possível.
Lord of Erewhon
11 comentários:
Gostei de ler e revi-me na tua auto-denúncia. Precisamos destas tomadas de consciência e destes textos, que nos dispam de nós.
Muitos parabéns pelo texto (que é, sem dúvida, excelente) e por todo o projecto. Parece-me que é de ideias como esta que a nossa cultura precisa para voltar a brilhar.
Olha quem é ela... ;)
Paulo, sabes bem que a literatura, mesmo pretensamente auto-biográfica, tem códigos próprios.
O que retrato foi um episódio verídico, de «banal» miséria das nossas cidades... O que me deixou mais perturbado - além do gesto sacro das mãos e da assunção imediata da sua miséria como forma de apelo à compaixão (tudo coisas perturbadoras para quem é de carácter místico, como nós) - foi mesmo o «por favor não me batam»!
Por segundos até fiquei irritado - não sou um skin nazi porra! -, e logo a seguir quase envergonhado.
Não só porque há muito racista de cabelo comprido. Mas principalmente porque havia uma tremenda inteligência social no apelo: há 20 anos um guedelhudo era um «marginal tolerado»; hoje é para o zé cidadão transeunte, principalmente se trajado de negro (a austeridade, pois), uma espécie de «normalidade tranquilizadora»... o zé brancóide não está à espera que eu lhe roube a carteira e o telemóvel - mas o reverso disto é que pertencentes (que também não roubam) a minorias rácicas possam temer que os espanque, principalmente se somos um grupo, vestidos de modo semelhante.
Há duas décadas atrás - ou três - alguma coisa de muito importante escapou ao Patriotismo... e agora pagamos todos.
Abraço.
Perturbador, de facto.
E isto:
Há duas décadas atrás - ou três - alguma coisa de muito importante escapou ao Patriotismo... e agora pagamos todos.
...absolutamente de acordo.
Beijo*
Como esse cidadão deve ter sofrido não só pela cor de sua pele, mas também pela sua condição miserável para supor que poderia ser alvo de uma surra.
Ele é apenas um entre vários nessa situação.
Klatuu/Lord, adorei este texto, que mostra uma grande humildade e capacidade de empatia.
Muitos parabéns.
"zé brancoide"
XD LOLOLOLOLOL ...
Excelente designação para o "cidadão médio" deste canto do mundo na aldeia global.
Eu não sou bem branco nem negro, sou barbudo, visto cores e já alguns pedintes me disseram também algumas vezes «não me bata...». Acho que algumas destas pessoas já foram agredidas, têm medo e vivem assustadas.
Como já foi dito, brilhante!
Precisamos de muitos como tu neste país.
As consciências estão adormecidas e é preciso acordá-las.
Os prazeres e os pesares são relativos aos espíritos e as carnes de seus possuidores. Analogamente aquele estado imaginário - que chamam felicidade, tem graus diferentes.
Enquanto em ti ficou a reflexão do pouco doado, com o miserável, seguiu a esperança diante da surpresa.
Coisa rara é encontrar um coração generoso (independente da embalagem que o carregue).
Abraço, Lord. És sempre enriquecedor.
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