Conta o povo que, quando garota, a Maria, como então era conhecida, levantou o pelo da venta contra uma vizinha por esta falar da sua mãe como a «Maria das Peles». Ora não querem lá ver, quem muda de pele são as lagartas. O dito assentou-lhe que nem uma luva e da alcunha de Maria Lagarta nunca mais se livrou. Passou pela mocidade sem conhecer namoro, fez-se velha cedo, diz quem tem lembrança desses tempos, tornou-se amarga que nem fel. Vive lá para as bandas do riacho, num casebre negro como as roupas que a cobrem, aquilo não é boa rez, gente de bem não se atreve a cruzar caminho com ela depois de anoitecer. Há quem jure a pés juntos que, quando a noite chega, os gatos-bravos se acercam e ela dá abrigo a todos. Solta-os antes de amanhecer, disso não há que ter dúvida, pois mal desponta o sol é um corrupio de gente sentada à espera nas pedras do riacho. Vêm de todo o lado, tem nome a bruxa de Gouviães, dizem que para tirar o quebranto não há igual. São meninas esbranquiçadas desenganadas pelos doutores, crianças a quem caiu o bucho, gente mal parida, mulheres com maridos amigados, tudo lá vai parar. Guardam-lhe respeito temeroso, as gentes de Gouviães, não que não há quem esqueça o caso do finado Zé da Lebre. Diz-se que uma tarde, já bem emborcado, ao atravessar-se com a Maria Lagarta se benzeu de dedos cruzados. Foi o fim do mundo, levantou-se uma trovoada que o céu parecia rachar, o riacho tomou ganas de rio grande e nunca mais se soube do infeliz.
Excerto de «Senhoras de Braga e Morcelas Alentejanas», obra que o Google desconhece por ainda não ter sido escrita.
10 comentários:
Oh Anabela, primeiro escreves muitissimo bem e este texto é fantástico.
Depois, o que acontece aqui e que não sei se alguém já reparou (falo de toda esta galeria que vai da Maria Lagarta ao Abade de Labrujães, da Senhora Silva ao Casimirinho e de Gouviães a Bronhais e às escadinhas da Madalena) é que terras e gentes ganham vida - e não somos nós que inteiramente os criamos - porque isto é um povo vivo numa terra que ainda não morreu.
Que diferença da "literatura":
"Estou amuada com o Tomás, pensou a Filipa. Esta noite vou sair com o Bernardo".
E pronto, está dito :)
Esta obra (a tal que o Google desconhece...) é para ser saboreada, degustada (de preferência com um cálice de Porto). Fico à espera de mais :)
Beijo*
Anabela,
Sem palavras...
De ler e chorar por mais:)
Casimiro,
"Estou amuada com o Tomás, pensou a Filipa. Esta noite vou sair com o Bernardo". :)))) Looooooooooool
Fez-me lembrar a Margarida R.P. e tantos que por aí andam da chamada literatura light.
Tens toda a razão. Tão diferente da "literatura"...
Beijinhos a todos
Casimiro,
Fizeste bem frisar isso. Aqui cheira a terra, a povo, a lagares, a pão, a vinho, a morcelas...
Vão sendo raros esses cheiros.
E fazem falta.
Fantástico!
Adorei!
Beijos.
Casimiro, este é o meu País, é a ele que ouço,são estas pessoas que têm a mais concreta das existências, são os anónimos esquecidos, são eles que cheiram à terra que cavaram, ao feno que colheram, a maçãs bichadas...
Obrigada :)
Beijinho
Mariazinha, Andorinha,Ruela e Biazinha
Beijinhos :)
...eu também!
Beijinho*
Beijinho Frankie
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