Álvaro de Campos, fotografado pelo seu amigo K, a evitar
que o vento escocês lhe roube o chapéu.
De Álvaro de Campos, «engenheiro naval jubilado», recebeu o director do «JL» a carta que – por razões evidentes... – de seguida se publica na íntegra.
Não fora o motivo desta carta, para mim, um superior imperativo, e não daria eu a V. Ex.ª o trabalho de me ler, pois que, após o prematuro desaparecimento físico de Fernando Pessoa (de que eu sou a vingança), me remeti a um total silêncio literário e social. Silêncio que, no entanto, me não privou em ocasião alguma de acompanhar, minuciosamente, a vindicação plena e o pleno triunfo da obra do Fernando, da do meu querido mestre Alberto Caeiro, e da do Dr. Ricardo Reis, assim como da minha própria. Do meu posto de observação da acidentada vida nacional e da paupérrima vida literária do mesmo país – o nosso – tenho seguido com atenção e regozijo íntimo a edição do nosso espólio literário. Dedico especial atenção aos prólogos das edições, aos artigos e estudos que sobre nós e a nossa obra se escrevem, porque me divertem e me ilustram, sobretudo, acerca das coisas que nunca nos passou pela cabeça lá deixar e que dizem esses senhores que deixámos. Se o Fernando fosse vivo, faço ideia a quantidade de cartas e artigos que escreveria, a uns e outros, rebatendo e criticando, demonstrando o contrário de tais teses, ele que tinha a mania de demonstrar até o indemonstrável, só para demonstrar quão indemonstrável era. Pela minha parte, nonagenário como já sou, e totalmente cego de alguns anos para cá, sigo agora, com mais convicção do que nunca, os ensinamentos do meu mestre Caeiro, e deixo simplesmente as cousas como elas estão, ou as colocam. Mas tudo tem um limite, como é o caso do motivo que me inspira esta carta, e me força a abandonar, por vez única, o meu longo silêncio.
Como é do conhecimento de V. Ex.ª, veio a lume há dias, sob a chancela de Edições Antígona (?), uma re-edição do opúsculo-história de Fernando Pessoa «O Banqueiro Anarquista», publicado pela 1.° vez em 1922, não sem as minhas oportunas reservas, na altura, acerca da construção silogística da história, inevitavelmente sofistica, filosoficamente insustentável e socialmente inócua. Recordo que não logrei demovê-lo, e o opúsculo saiu mesmo, porque, isso sim, está bem escrito e é um exemplo acabado do que eram as veredas mentais do Fernando.
Ora, sucede que a tal re-edição contém um prólogo nefando, que me fez saltar de raiva na poltrona, quando o meu habitual colaborador mo leu. Assinado, ou antes, não-assinado por um tal «k.» seguido do epíteto «sine nomine vulgus» (naturalmente o energúmeno julga que impressiona alguém com esse latim), o prólogo está dividido em dois apartados.
No primeiro se vertem conceitos discutíveis e alguns disparates comentáveis até; mas no segundo... o «k.» (será k. de «kaputt» ou antes de «kamelo»?) ultrapassa com absoluta puerilidade os limites da elementar decência e mergulha no insulto gratuito, improfícuo, lastimoso, indo ao ponto de chamar fascista a Fernando Pessoa!... Fascista!...
Tenho visto e ouvido de tudo nesta longa vida que o Fado me reservou, e a única coisa que me restava para ouvir, agora que já não vejo nem leio de todo, era, realmente, que Fernando Pessoa é um reaccionário fascista! - além de várias outras lindezas de índole semelhante.
Se o Fernando fosse fisicamente vivo, ele próprio daria a merecida resposta ao kamelo belga, ou talvez não desse cousa nenhuma e risse como quem nunca riu. Mas não podendo eu ficar indiferente perante tamanho desaforo, peço de V. Ex.ª a lealdade pessoana de publicar na íntegra, no jornal que proficientemente dirige, esta carta. Quanto ao «k.» é patente a limitação na que se debate, e óbvia a sua ignorância da vida, obra, personalidade e ideias de Fernando Pessoa, ignorância tanto mais profunda quanto atrevida – como todas elas o são – que só me inspira, agora que em público desabafei, a gargalhada sadia: ó menino kapa: estude, viaje e cale-se. Sobretudo cale-se. Fernando Pessoa é para adultos com imaginação.
Resta-me agradecer a V. Ex.ª, senhor Director, a paciência de me ler e a atenção dispensada.
De V. Ex.ª
De Álvaro de Campos, «engenheiro naval jubilado», recebeu o director do «JL» a carta que – por razões evidentes... – de seguida se publica na íntegra.
Não fora o motivo desta carta, para mim, um superior imperativo, e não daria eu a V. Ex.ª o trabalho de me ler, pois que, após o prematuro desaparecimento físico de Fernando Pessoa (de que eu sou a vingança), me remeti a um total silêncio literário e social. Silêncio que, no entanto, me não privou em ocasião alguma de acompanhar, minuciosamente, a vindicação plena e o pleno triunfo da obra do Fernando, da do meu querido mestre Alberto Caeiro, e da do Dr. Ricardo Reis, assim como da minha própria. Do meu posto de observação da acidentada vida nacional e da paupérrima vida literária do mesmo país – o nosso – tenho seguido com atenção e regozijo íntimo a edição do nosso espólio literário. Dedico especial atenção aos prólogos das edições, aos artigos e estudos que sobre nós e a nossa obra se escrevem, porque me divertem e me ilustram, sobretudo, acerca das coisas que nunca nos passou pela cabeça lá deixar e que dizem esses senhores que deixámos. Se o Fernando fosse vivo, faço ideia a quantidade de cartas e artigos que escreveria, a uns e outros, rebatendo e criticando, demonstrando o contrário de tais teses, ele que tinha a mania de demonstrar até o indemonstrável, só para demonstrar quão indemonstrável era. Pela minha parte, nonagenário como já sou, e totalmente cego de alguns anos para cá, sigo agora, com mais convicção do que nunca, os ensinamentos do meu mestre Caeiro, e deixo simplesmente as cousas como elas estão, ou as colocam. Mas tudo tem um limite, como é o caso do motivo que me inspira esta carta, e me força a abandonar, por vez única, o meu longo silêncio.
Como é do conhecimento de V. Ex.ª, veio a lume há dias, sob a chancela de Edições Antígona (?), uma re-edição do opúsculo-história de Fernando Pessoa «O Banqueiro Anarquista», publicado pela 1.° vez em 1922, não sem as minhas oportunas reservas, na altura, acerca da construção silogística da história, inevitavelmente sofistica, filosoficamente insustentável e socialmente inócua. Recordo que não logrei demovê-lo, e o opúsculo saiu mesmo, porque, isso sim, está bem escrito e é um exemplo acabado do que eram as veredas mentais do Fernando.
Ora, sucede que a tal re-edição contém um prólogo nefando, que me fez saltar de raiva na poltrona, quando o meu habitual colaborador mo leu. Assinado, ou antes, não-assinado por um tal «k.» seguido do epíteto «sine nomine vulgus» (naturalmente o energúmeno julga que impressiona alguém com esse latim), o prólogo está dividido em dois apartados.
No primeiro se vertem conceitos discutíveis e alguns disparates comentáveis até; mas no segundo... o «k.» (será k. de «kaputt» ou antes de «kamelo»?) ultrapassa com absoluta puerilidade os limites da elementar decência e mergulha no insulto gratuito, improfícuo, lastimoso, indo ao ponto de chamar fascista a Fernando Pessoa!... Fascista!...
Tenho visto e ouvido de tudo nesta longa vida que o Fado me reservou, e a única coisa que me restava para ouvir, agora que já não vejo nem leio de todo, era, realmente, que Fernando Pessoa é um reaccionário fascista! - além de várias outras lindezas de índole semelhante.
Se o Fernando fosse fisicamente vivo, ele próprio daria a merecida resposta ao kamelo belga, ou talvez não desse cousa nenhuma e risse como quem nunca riu. Mas não podendo eu ficar indiferente perante tamanho desaforo, peço de V. Ex.ª a lealdade pessoana de publicar na íntegra, no jornal que proficientemente dirige, esta carta. Quanto ao «k.» é patente a limitação na que se debate, e óbvia a sua ignorância da vida, obra, personalidade e ideias de Fernando Pessoa, ignorância tanto mais profunda quanto atrevida – como todas elas o são – que só me inspira, agora que em público desabafei, a gargalhada sadia: ó menino kapa: estude, viaje e cale-se. Sobretudo cale-se. Fernando Pessoa é para adultos com imaginação.
Resta-me agradecer a V. Ex.ª, senhor Director, a paciência de me ler e a atenção dispensada.
De V. Ex.ª
Cdo. Venr. e obrigado.
Álvaro de Campos
Álvaro de Campos
Engenheiro Naval jubilado.
In JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 16 de Março de 1982.
In JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 16 de Março de 1982.
8 comentários:
Essa carta foi escrita num centro kardecista?Ele morreu em 1935 e está publicada como se tivesse sido escrita em 1982!
LOLLLLLL!
Beijos, maninho.
Heterónimo nunca morre! - e foi o Allan Kardec quem tirou a foto... o K., topas? JAJAJAJAJAJA!!!
Beijinhos.
P. S. Isto é real, foi mesmo publicado onde refiro. Não se metam com espectros!! :)
JAJAJAJAJAJAJAJA!
Te amo, maninho porreta!
Eita cabra inteligente e bem-humorado!Essa é a característica que mais adoro em você: essa maneira inteligente e pândega de lidar com a vida.
Beijos aos milhões.
(Pssst...! Chega aqui: temos que informar aquela senhora professora que apagou nossos comentários cyberpunk... que foi Fernando Pessoa quem inventou a língua dos KK!! JAJAJAJAJAJA!!!)
Foi o Álvaro quem pediu ao Kardec pra tirar a foto... estava aborrecido de o confundirem com o Renato e o Paulo! Esse povo é despirolitado mesmo! LOL!!!
Nasceu há já 120 anos...
E continua, ainda hoje, tão à frente do seu -do nosso- tempo.
Tão a frente do nosso tempo que entrou na máquina do tempo e se deixou fotografar em 1982, e quiça será benevolente e se deixará fotografar amiúde em nosso século, em pleno ano 2000 e alguma coisa.
Dessa vez quero uma foto do Alberto Caieiro. Ando querendo muito e tendo poucas de minhas vontades realizadas.
Hoje à tarde estive na FNAC e fiquei lendo um pouquito. Quando ia ser apresentada ao Ricardo Reis tive que ir embora.
Ai ai...saudade de ler uma fábula!
Tsc tsc tsc... meu caso é de internação.
Hahahahahaha!
Excelente texto Lord!
Essa caixa de comentários está impagável!
Beijos.
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