Esta é uma tentativa de abordagem à historieta de cordel, uma velha tradição popular que, tal como, em determinada época, os capítulos da história trágico-marítima, produzia textos que tocavam e excitavam a imaginação popular, sendo vendidas "a tostão" nas feiras portuguesas. Esta tradição sobrevive ainda nos sertões brasileiros e, entre outras, na meritória actividade editorial da Tupynanquim Editora (Ceará - Brasil). E eis como, confrontados com a sua "descoberta" num mercado de rua em Fortaleza e animados pelo exemplo do grande Pessoa que não se eximiu de experimentar os difíceis caminhos das "quadras ao gosto popular", aventurámo-nos também no género antigo e castiço da "literatura de cordel". Lido com a entoação e sotaque sertanejo, o texto surgirá mais próximo do modo como o concebemos.
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Num botequim perdido
Lá no meio do sertão
Faz tempo que foi ouvido
Diálogo ou assombração
Que muito mexeu comigo.
E pra não ficar esquecido
Escrevo prá multidão
Sentados à mesma mesa
Quatro ilustres personagens
Carácteres de grande nobreza
Descansando das viagens
Conversavam com franqueza.
Que imagem, que beleza!
Naquelas estranhas roupagens...
Conselheiro, o anfitrião,
Saudava seus companheiros:
-Minha casa é o sertão
sede bem-vindos, romeiros.
Grande, imensa mansão,
Um povo de bom coração
Escravo de fazendeiros…
- Sei do que falas, bom homem.
Eu venho da serra onde
Nem águias nem lobos dormem
E cada penedo esconde
Mais penedos, morte e monte…
Filhos a gemer de fome.
César, Júlio, ele mesmo
Tomou a palavra e disse:
- Conquistei terra e torresmo
Sem derrota que se visse
E os maiores “lobos” que vi
Foi na cidade mesmo…
Cabral estava sorrindo
Achou que devia falar:
- Amigos, que estou ouvindo?
Tanta amargura e penar…
Quem não quer viver fugindo
De lobos, no mar infindo
Tem comigo seu lugar!
Irmãos da mesma irmandade,
da seita dos viajantes,
alguém falou da amizade
natural de homens errantes,
amantes da Liberdade
profetas da sociedade,
Tanto hoje como dantes.
Vai daí, alguém propõe:
- Cada um por sua vez
Conte a história que compõe
Sua vida - o que fez.
Termina, ninguém se opõe.
Democracia se impõe
Sobre o silêncio dos três
“Quis libertar minha gente
do poder da tirania.
Em Canudos nós “fez” frente
A muita capitania
com multidão valente,
jagunço, pobre, indigente
pela vida não temia...”
Assim Conselheiro Antônio,
Começou a sua história
(que faz medo ao demônio)
de grandeza e memória!
«Mandaram major Febrônio,
Um militar idôneo,
Mas o “escol” perdeu prá “escória”...
A seguir vem coronel
Roubar-nos a Liberdade.
Deu-nos guerra sem quartel
Nome César foi vaidade
De imperador sem anel
Perde a sua no tropel
O “corta-cabeça” de alarde!»
«Alto lá, que esse nome
Tem sido muito abusado.
“César” já é renome
Que eu deixei registrado
Na história... até sobrenome!
E quando a fama é enorme
Um ou outro sai furado...»
«Ô César, esquenta não.
Conselheiro foi inócuo
prá teu nome, pois então.
Mas agora que me foco
em teu nariz vermelhão
(Cabral não me chamarão)
é Cleópatra ou... Pinóquio?!
Da Itália ao Egito,
Diz a história que tem
Um cara que andou aflito
Mas tempos depois, porém,
Resolvido o conflito,
Foi o bom e o bonito
E se deu lá muito bem...»
Começa a fanfarronada:
«Amigos, não é segredo
O poder que tem a farda
Nos homens inspira medo,
Na mulher faz com que arda
Uma paixão danada
Que as leva... ao “toledo”.
Sabeis vós e toda a gente
Que em terras de faraós
Tive grande ascendente.
Marco Antônio, após,
Foi menos inteligente
Prá Cleo foi menos quente...
(queixa dela, aqui pra nós)»
Viriato, a rir, desfere:
«Ô César, não fale tanto
De conquistas de mulher.
Tenho água pelo manto
E lembro-me de aprender
Que o último a saber...
E mais não adianto...»
César sente uma tontura:
«-Viriato tem cuidado,
A serra é pouco segura.
Pra quem me tem provocado
A risota pouco dura.
O que eu disse nessa altura
Ficou mal interpretado.
Uma ocasião nefasta
Eu disse que à mulher
De César, de mim, não basta
Fiel e honesta ser
Tem também de parecer casta!
Como a mulher que afasta
Qualquer que a quer... conhecer.»
Cabral, num jeito gozado:
«É, coisa doce de ouvir
mas César está ferrado
À Lusitânia quis vir...
Nem viu nem venceu, coitado.
No Egito é consolado...
Mas sente a testa florir...»
Antônio: «Paz no redil!
Tenham calma, europeus,
Nós estamos no Brasil.
Novo mundo, amigos meus!
Para cada um tem mil
Garotas de bunda e pernil
De enlouquecer um deus...
Nesta terra que eu piso
Não precisa ser estribado
Pra chegar no paraíso
Que a mulher tem guardado
Para o homem sem juízo.
Basta entender meu aviso,
Será muito... bem-amado!
Escutem com muita atenção:
Nas Terras de Vera Cruz,
Outra civilização,
A alma humana reluz.
No bater do coração
Bate um sambinha-canção
E toda a vida seduz!»
Viriato, o mais velho
A César estende a mão:
-Vamos caçar coelho?
Deixemos de discussão
Já sinto dor no joelho
E comichão no artelho
De estar nesta posição
Cabral, abraçando os dois
E Conselheiro ali perto:
«- Ao Alto, os corações!
Na cidade ou campo aberto
Desentendendo-se os bois
Sobra pra nós depois...
Ser amigo é que está certo!»
L.Mano
12/1/2005, Fortaleza – CE, Brasil
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Caio Júlio César, Roma 12-7-100 a.C. - Março 44 a.c.
Antônio Conselheiro, Quixeramobim, 1830 – Canudos, 1897
Pedro Álvares Cabral, Belmonte, 1467 – Santarém, 1520
Viriato , Loriga 186 AC - 139 AC
2 comentários:
Gostei. A criatividade popular é incrível!
A voz do povo =)
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