1 – Recriar uma revista e um movimento de
transformação das mentalidades e das vidas - A revista Nova Águia pretende recriar no presente o espírito da revista A Águia, órgão do movimento da
Renascença Portuguesa, enquanto aglutinador de algumas das mais notáveis
figuras da nossa cultura e impulsionador de um fecundo debate de ideias de que
resultaram, pela própria divergência, alguns dos mais importantes movimentos
culturais do século XX em Portugal, como os que se expressaram nas revistas Orpheu e Seara Nova. A Nova Águia
pretende continuar e recriar, adaptado à contemporaneidade, o melhor desses e
de outros movimentos, contribuindo para uma transformação profunda das
mentalidades e das vidas.
2 – A profunda crise de Portugal e a aspiração
a algo de novo - Tal como no início do século XX, sente-se que Portugal
atravessa no presente uma profunda crise,
a todos os níveis, com tudo o que a palavra implica de risco e oportunidade
simultâneos. Agudiza-se hoje de novo, como escreveu Raul Proença num dos
manifestos da “Renascença Portuguesa”, uma “atmosfera” composta de “um sentimento
de mal-estar” e de “um desejo de alguma
coisa” indefinida, “que nos incite, que nos impulsione, que nos una, que
nos salve”. Sente-se haver, na nação e na nossa tradição cultural, imensas
virtualidades criadoras que desde há muito não são assumidas nos rumos
dominantes da nossa vida institucional e pública, cada vez mais condicionados
pela busca de soluções meramente materiais, económicas e tecnológicas – que em
si mesmas são insuficientes e se têm revelado decepcionantes – e por uma
crescente anestesia e massificação das consciências, abandonadas ao
produtivismo-consumismo, à publicidade e às distracções mais grosseiras, para
que não sintam a alienação e o vazio das suas vidas. Quanto mais se pretende
ocultar isso, com novas políticas de fachada, mais se sente vivermos num país
onde nada se discute de importante, incluindo o sentido a dar à nossa
existência colectiva. Sente-se que o verdadeiro problema nacional é um problema
de atitude e de mentalidade e haver qualquer coisa de vital em nós que não se
conforma ao paradigma produtivista-consumista da globalização civilizacional
que domina e devasta o planeta. Sente-se haver uma diferença que aspira a
manifestar-se e a ganhar voz. A saudade de um não sei quê ainda desconhecido, vago e nebuloso, como diria
Pascoaes, mas que aponta a um futuro diverso daquele que nos querem impor.
Talvez a saudade de nós mesmos, o pressentimento de tudo o que podemos ser e a
dor do pouco ou nada que vamos sendo.
3 – Morte e refundação de Portugal - Portugal vive um período de
morte, que pode ser ou não de ressurreição. O nosso finisterra é hoje um novo Finis Patriae, como na visão de Guerra
Junqueiro. O enfeudamento do estado português aos grandes poderes políticos,
económico-financeiros e culturais mundiais dissolve-nos efectivamente noutras
áreas de influência e soberania, preservando-nos apenas uma independência
formal, para logro dos ingénuos.
Esta morte é
também a da evidente indiferença, descrença e desorientação a respeito do
sentido e destino da nação, mais visivelmente traduzido no alheamento e
descrédito da grande maioria dos portugueses em relação à classe política, que
faz com que a abstenção seja enorme, as eleições ganhas e os governantes
eleitos por maiorias francamente minoritárias em relação à totalidade da
população, o que não deixa de questionar a sua legitimidade real. Há um fosso
crescente entre os cidadãos e os seus supostos representantes, entre
governantes que parecem apenas perseguir objectivos pessoais de poder, ou ser
meros gestores e funcionários do sistema, e as nossas legítimas aspirações a
termos nos postos de decisão pessoas realmente empenhadas no bem comum e com
ideias de rumos mais dignificantes a dar à nossa vida colectiva.
Depende de
todos nós que esta situação se altere. Portugal necessita de um grande desafio
colectivo, que assegure o sentimento de solidariedade cívica sem o qual uma
nação não pode existir e que não pode reduzir-se aos entusiasmos fugazes da
expectativa de proezas futebolísticas. Há que refundar Portugal: “baralhar e dar
de novo”, como dizia Agostinho da Silva.
4 – O sentido de Portugal como busca de uma
fraterna comunidade humana e vital, alternativa ao esgotamento da civilização
dominante - Portugal, enquanto pátria, é não só o conjunto dos que no seu
território nascem, vivem e a sua organização sócio-política, mas também a
energia viva dos mitos, símbolos, ideias, valores, vivências, sonhos,
inquietações e aspirações que, na cultura popular e erudita, se plasmam numa
língua e nos configuram uma identidade cultural dinâmica com um sentido
espiritual, ético e existencial e uma vocação histórica. Portugal enquanto
pátria transcende a nação espácio-temporal e contribui para o movimento da
consciência humana para a universalidade. Sobretudo a partir do momento em que,
com o abandono da terra-mãe e o descentramento para o mundo, a nossa própria
identidade começou a ser vivida e pensada como busca de uma fraterna comunidade
universal, multicultural e multireligiosa, fundada num sentido trans-dogmático
e ecuménico do divino ou do absoluto, onde o homem se emancipe material e
espiritualmente e aceda a uma vida plena sobre a terra, conforme o culto
popular do Espírito Santo, Luís
de Camões, Padre António Vieira, Fernando Pessoa e sobretudo
Agostinho da Silva o expressaram nas metáforas da Ilha dos Amores, do Quinto
Império e do Império do Espírito Santo.
A isto há que
juntar a aspiração a uma mais ampla fraternidade vital, que subordine o
antropocentrismo ao amor e compaixão por todos os seres sensíveis, como emerge
na ética cósmica de Antero de Quental, Sampaio Bruno, Guerra Junqueiro, Teixeira de
Pascoaes, José Marinho e Agostinho da Silva, que anteciparam em mais de um
século a consciência ecológica e holística que hoje se impõe como condição de
sobrevivência da própria humanidade.
Dado que a
nossa maior singularidade é precisamente este desejo de infinito e totalidade,
o nosso futuro, como proclamou Pessoa, não pode ser menos do que “Ser tudo, de
todas as maneiras […] !”. Assim, como viu Agostinho da Silva, “Portugal passa a
ser não propriamente um determinado país, […] mas sim uma ideia a difundir pelo
mundo”. A ideia de realizar todas as possibilidades fundamentais do ser humano
e viver a irmandade cósmica. O que é uma notável alternativa ao esgotamento de
uma civilização em que a maioria dos seres humanos cada vez mais se reduzem à
egocêntrica ganância do poder, da riqueza, da fama e do prazer, a sobreviver
como escravos produtores e consumidores de coisas fúteis e a bélicos predadores
de si mesmos, dos seres vivos e do planeta, numa nítida decadência das
faculdades superiores, como a sabedoria, a bondade, a sensibilidade e a
criatividade.
5 – As virtualidades e o universalismo da comunidade lusófona -
A comunidade lusófona é o fruto mais imediato e concreto, em termos histórico-culturais,
deste impulso português para a universalidade. Portugal não pode ser pensado
fora da grande comunidade dos cerca de 240 milhões de falantes, em todo o
mundo, da língua que tem vindo a plasmar e a ser plasmada pelas culturas vivas
que nela pensam, sentem e falam e que resultam daquele ímpeto para abraçar o
mundo, irredutível às motivações imperialistas – bélicas, políticas, económicas
e religiosas – que no passado o acompanharam e perverteram e de que hoje nos
queremos livres. Desde a Galiza a Timor, passando pelo Brasil, Cabo Verde, São
Tomé e Príncipe, Guiné, Angola (e Cabinda), Moçambique, Goa, Damão, Diu, Macau,
sem esquecer Malaca e Flores, e todos os lugares onde se fala o português e se
prezam os valores lusófonos, há uma comunidade vital irmanada pela língua, pela
cultura e pela história que, apesar das suas dificuldades materiais e sociais,
mas também por estar à margem dos grandes poderes do mundo, encerra em si
virtualidades criadoras, e tão alternativas como necessárias aos rumos dominantes
de um mundo em crise, como a vocação para a convivência harmoniosa com todos os
diferentes povos, culturas e religiões, expressão ainda do que Jaime Cortesão
designou como o nosso “humanismo universalista”.
6 – Promover as ideias e valores da cultura
portuguesa e lusófona como contributo para um outro paradigma e uma outra
globalização - O valor e fecundidade da cultura portuguesa e lusófona
residem na medida em que, junto com o melhor de todas as culturas planetárias,
possa contribuir para dar à civilização tecnológica e material o indispensável
e superior sentido espiritual e ético que lhe permita a urgentíssima
transformação sem a qual não pode sobreviver a uma mais que provável
catástrofe, sobretudo ambiental. As ideias e valores da cultura portuguesa e
lusófona – a sua aspiração ao infinito e à totalidade, o seu sentido da
irmandade cósmica e do bem universal, a sua vocação para mediar e promover a
harmonia entre diferentes povos, culturas, civilizações e religiões – ,
convergindo com a emergência planetária de um novo paradigma holístico, podem
ser um importante contributo para uma outra globalização, a da paz, da
fraternidade e da sabedoria, alternativa àquela cujo triunfo planetário se
pressente como um prolongado e agónico canto de cisne, destino inevitável de
todos os grandes impérios históricos e materiais.
Promover assim
as grandes ideias e valores da cultura portuguesa e lusófona e dar-lhes
visibilidade e efectividade a nível nacional, lusófono e mundial é um serviço
prestado a toda a humanidade e a toda a terra e um contributo para um mundo
novo. Sem a perversão do “orgulhosamente sós”, contrário ao nosso
universalismo, que nos capacita para assimilar o melhor que há em todo o mundo,
há que reconhecer que boa parte das soluções que os portugueses desde há
séculos procuram no exterior pode residir ignorada no mais fundo de nós mesmos.
Há que vencer o complexo de inferioridade e subserviência perante o
estrangeiro, que faz com que sejamos compulsivamente maldizentes de nós mesmos
e só reconheçamos méritos ao que é nacional após eles terem sido reconhecidos
fora do país. O reencontro e reconciliação dos portugueses e lusófonos consigo
próprios, por ser um reencontro com a sua aspiração à universalidade, é a
condição de possibilidade de um mais pleno e salutar encontro com a comunidade
universal dos povos e das culturas. Já finda o ciclo de esperança e desengano
inerente à busca do Paraíso e da redenção em regiões geográfico-culturais
parcelares e limitadas: África, Oriente, Brasil, Europa. O desafio actual é
encontrarmo-nos e ao mundo, ao mundo em nós, a nós no mundo. Disso depende um
outro modo de vivermos a própria integração europeia, aspecto parcial da nossa
mais ampla integração no mundo, que seja benéfico para nós e para a própria
Europa. Como o viu Agostinho da Silva, se outrora levámos a Europa ao mundo,
assumindo boa parte de responsabilidade na globalização dominante, é nossa
tarefa trazermos hoje o mundo à Europa, renovando-a pelo convívio com as
culturas planetárias e libertando-a do persistente eurocentrismo em que
perverte o melhor de si mesma.
7 – Uma pátria alternativa mundial - Refundar Portugal é repensá-lo e
reorganizá-lo inspirados no sentido da cultura e da comunidade lusófona como o de servir o bem do mundo,
veiculando uma cultura de paz, diálogo e compreensão entre os diferentes povos,
culturas, civilizações e religiões. A própria diáspora planetária da comunidade
lusófona é expressão física dessa vocação e condição estratégica fundamental
para a difusão de um novo paradigma de consciência e convivência planetária.
Portugal e a
comunidade lusófona devem assumir-se como espaço mental, cordial e físico de
pontes, transições, mediações, diálogos e intercâmbios entre povos, culturas,
civilizações, religiões e irreligiões, entre Norte e Sul, Ocidente e Oriente,
passado e futuro. Portugal e a comunidade lusófona poderão ser uma espécie de pátria alternativa mundial, embrião
dessa possível comunidade planetária futura cuja visão é tão presente na nossa
tradição. Uma pátria alternativa mundial no sentido de uma pátria do espírito – aquela “ideia a difundir pelo mundo” de que
fala Agostinho da Silva – que dê o exemplo de ser livre do comum egoísmo
nacional e nacionalista veiculando ideias, valores e práticas tão universais e
benéficas que todos os cidadãos do mundo nelas se possam reconhecer,
independentemente das suas nacionalidades, línguas, culturas, ideologias e
religiões. Uma pátria-mátria-frátria que esteja sempre na primeira linha da
expansão da consciência, da defesa dos valores humanos fundamentais e das
causas humanitárias, da sensibilização da comunidade internacional para todas
as formas de violação dos direitos humanos e dos seres vivos e do apoio
concreto a todas as populações em dificuldades.
8 – Libertação de complexos de superioridade e
inferioridade - Devemos reconhecer que as qualidades virtuais do homem e da
cultura portugueses e lusófonos se acompanham de não menos evidentes e
correlatos defeitos, o maior dos quais é a descrença em si próprios, a
excessiva passividade e a falta de persistente e metódico cultivo e
desenvolvimento dessas mesmas qualidades. A verdadeira superação do referido
complexo de inferioridade deve libertar-nos também da sua bipolar mutação num
complexo de superioridade, curando-nos dessa oscilação entre períodos de fugaz
exaltação extrema e prolongada e profunda depressão que tanto nos caracteriza
psicológica e historicamente. Para assumir plenamente a sua vocação histórica,
o homem português e lusófono deve começar por se autoconhecer e se libertar dos
seus complexos.
Neste sentido,
há que repensar alguns aspectos da tendência fortemente enraizada na nossa
tradição, sobretudo a partir dos Descobrimentos, desde Camões a Pascoaes,
Pessoa e Agostinho da Silva, para um lusocentrismo messiânico, em que Portugal, como
nas palavras paradigmáticas do Padre António Vieira, tende a ser visto como um
“novo povo eleito”, do qual dependeria unilateralmente a redenção do mundo.
Aqui retemos a crítica de Eduardo
Lourenço à “construção mítica da imagem de um Portugal-menino-jesus-das-nações”,
tanto mais que, a par do irrealismo e das perigosas consequências dos
messianismos etnocêntricos, o resultado desta concepção, entre nós, tem sido
sobretudo a esperança passiva, sempre frustrada e adiada, de uma mutação miraculosa
dos acontecimentos que nos deixa afinal à margem e à mercê do seu encadeamento,
no mero limbo desse “salto para fora da história”, como caracterizou Oliveira Martins o
sebastianismo, que não se converte numa recriação da realidade e da vida. Além
disso, Portugal e a comunidade lusófona não são essências ou supra-entidades
individuais, com uma vida própria, que se possam substituir aos indivíduos
concretos que pensam e agem e, em todas as nações e culturas, podem incarnar
ideias que melhorem o mundo. Dito isto, não rejeitamos que os mitos e profecias
acerca de um destino grandioso de Portugal e da comunidade lusófona,
sintetizados na ideia de contribuirmos para o Quinto Império como metáfora da
consciência e da fraternidade universal, são um indicador da nossa vocação e
possibilidade mais profundas, que todavia só se realizarão se, em conjunto com
o melhor de todos os povos e culturas, nos auto-elegermos para as cumprir.
9 – O MIL: Movimento Internacional Lusófono: um
movimento cultural, cívico e pedagógico na linha da “Renascença Portuguesa”
- O projecto Nova Águia não se esgota
na revista assim designada, sendo uma das expressões de um movimento mais vasto
de carácter cultural, cívico e pedagógico, o MIL: Movimento Internacional
Lusófono, que pretende continuar o trabalho do movimento da Renascença
Portuguesa, no início do século XX, agora a uma escala também lusófona e
planetária. Um movimento que pretende a transfiguração do presente imediato e
não apenas um futuro distante. Embora visemos em última instância transformar a
sociedade, a nação e o mundo, sabemos que isso só é possível a partir da nossa
própria transformação individual e do seu alastramento contagiante a outras
transformações individuais. A este nível, de ninguém dependemos se não de nós mesmos
e portanto tudo é desde já possível.
Destinamos
estas ideias e proposta a todos os cidadãos, mais imediatamente aos portugueses
e lusófonos, mas também aos homens de todo o mundo, que na sua universalidade
se possam reconhecer. Propomos que, retomando o projecto de Agostinho da Silva
no final da vida, e a exemplo do culto popular do Espírito Santo, nascido na
nossa Idade Média e disseminado por todo o planeta, todos os que nestas ideias
se reconhecerem se organizem em núcleos de debate e difusão desta proposta e
sobretudo espaços de fraterna convivência onde desde já se antecipe o mundo
melhor que todos desejamos. É a partir deste movimento de base que se podem
progressivamente transformar os poderes instituídos, de modo a substituir-se
uma política escrava da incultura, da vontade de poder e da obediência aos lobbies financeiros mundiais, pela acção
de pessoas desinteressadamente empenhadas em servir o bem comum e com um
sentido ético-espiritual, cultural e civilizacional da política, que saibam e
pratiquem como a sabedoria e o amor são indispensáveis à melhor organização do
mundo.
A Nova Águia assume a tarefa pedagógica de
difundir ideias fundamentais de modo acessível a todos, não sendo uma revista
de intelectuais e artistas para intelectuais e artistas e convocando uns e
outros – quase sempre demasiado fechados nas suas carreiras e obras – a porem o
seu saber, sensibilidade e criatividade ao serviço da transformação da sua vida
e da dos seus concidadãos.
10 – Unir céu e terra: É a Hora ! - Ao
escrever e publicar este Manifesto assumimos
a nossa responsabilidade e não fugimos ao grave desafio do momento presente.
Fazemo-lo com a alegria de quem não cala o que pensa e sente, por mais incómodo
que possa ser. Aqui ficam estas ideias e proposta. A todos pertencem, para que
as critiquem, melhorem e assumam. O primeiro passo está dado.
A Nova Águia vai levantar voo. Por
natureza habita os mais altos cumes e paira nos mais elevados e insondáveis
espaços, contemplando o sol face a face. Mas esta Nova Águia tem um coração de Pomba. Por isso tanto mais se erguerá
no céu virginal e puro quanto mais descer em direcção à terra, para aí
pacificar, libertar e erguer para o mesmo céu os olhos e os corações de todos
os seres, seus irmãos. Que todos ganhem asas e para sempre unam céu e terra é o
seu único fim.