UMA QUESTÃO
DE OLHAR PARA REPARAR: VOLTAR A LER ANA LUÍSA AMARAL
António José Borges
Ana Luísa Amaral (ALA, 1956-2022) foi
poeta, dramaturga, ficcionista, ensaísta e tradutora de Emily Dickinson,
William Shakespeare ou Louise Glück, entre outros. A par da sua atividade de
professora universitária, publicou mais de trinta livros e a sua obra está
traduzida e publicada em diversos países, escrevendo ela
própria em espanhol. Obteve várias distinções e prémios em Portugal,
destacando-se, entre outros (como o da APE ou do PEN Clube), o Prémio Literário
Correntes d’Escritas ou o Prémio Vergílio Ferreira, e no estrangeiro a Medalha
da Cidade de Paris, o Premio de Poesía Fondazione Roma e o Prémio Rainha Sofia
de Poesia Iberoamericana. A 1 de abril de 2022, foi agraciada com o grau de
Comendador da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada. As insígnias foram apenas
entregues a 6 de agosto de 2022, a título póstumo, à filha de Ana Luísa Amaral.
Toda a poesia de ALA pode ser vista como uma contínua
sessão de psicanálise em relação não propriamente com a medicina mas sim com a
psicologia, a antropologia ou a filosofia. Não propõe qualquer moral nem tende
a destruir a religião. É um claro-escuro com luz dentro ou O olhar Diagonal das Coisas,
justamente o título da sua obra completa de poesia, o qual é tomado do
espetáculo de teatro homónimo e levado à cena, em torno da sua obra, pela
companhia Assédio, com a colaboração do Teatro do Campo Alegre, no Porto.
Não pretende este texto contextualizar ou classificar
a obra de ALA. Não é este o espaço específico para tal e isso já foi
devidamente feito, mas nunca acabado. Cada um de nós tem o seu cânone e é em
cada leitor que termina a obra. Neste momento cumpre-nos deixar, também num
exercício de destaque gráfico em grifo, vincados os traços gerais, e fazer
entrever os particulares, da sua poesia, sobretudo, pois é o que melhor a
define como escritora.
Desde a Minha
senhora de quê, de 1990, até ao Mundo
de 2021 a viagem pela sua poesia nunca se acaba. Há, logo desde o início,
sempre Qualquer Coisa de Intermédio
que por meio de Espionagens Verbais soltam
sequências de ritmos e pensamentos temperaturados. Não são quaisquer Coisas de partir, são Imagens, Entrelaços no tempo fixados não numa só Lua de Papel mas em várias. Os seus poemas são Epopeias, de luz, à
escala das Poses do desconforto do
sujeito lírico, Queixas ou resignações,
Inocentíssimos plágios.
Ana Luísa Amaral é uma Senhora da literatura, de
muitos caminhos, de Histórias com
posteridade, como glosas de Shakespeare, de uma noite de verão, e a sua
produção poética um interlúdio entre a vida e a dita posteridade. Sim, ALA, Às vezes o Paraíso fixa As danças no telhado, como Revisitações, Precipícios de sonho ou os
pequenos brilhos, A leste do Paraíso;
criação de Imagens ou Imagias nas Correções do amor ou As
delícias do verbo Entre o Inferno e os Anjos n´O tempo das estrelas e n´A
arte de ser tigre entre as estações e os Inversos, pois o interior das coisas é sempre por ALA olhado e os
contrários sempre plausíveis. Com efeito, na sua produção não encontramos a
obsessão pela busca d´A génese do amor,
antes Os perigos do êxtase, os Apontamentos desiguais, até Teares da memória como quem guarda os sonhos e além, Entre dois rios e outras noites.
A coerência da sua obra é como Se fosse um intervalo de Discrepâncias
(a duas vozes), com pausa para um Breve
exercício em três vozes, também composto de Trovas de memória e Escrito à
régua, variando as rotações e os andamentos. A sua voz poética é um
instrumento da linguagem universal que toca o âmago do escuro, uma Outra fala. E todavia há uma composição química nas suas soluções metafóricas
ou alegóricas, brilhos que abraçam As
indiferenças nítidas das sílabas, tudo Sentidos
d´O Som que os versos fazem ao abrir um
Intervalo em seu tempo: [quem sabe] receitas para a crise…, Pequenas fábulas.
Debruçando-se sobre Coisas, Regressos, Povoamentos, mitologias íntimas e
culturais universais, escreve, portanto, sobre e o Mundo, Experiências e
evidências, com Sopros de Intervalo para Outras paisagens: Mundos.
Em 2014, publicou Escuro,
com apropriadíssimas epígrafes de William Blake e de Juan de la Cruz (que
definiu o amor como poucos), uma obra
de poesia que, e estas escolhas são sempre discutíveis entre os exegetas ou os
leitores comuns, que não são de somenos, me agrada particularmente, conquanto o
seu conteúdo pudesse ser menos digressivo, por considerar que é cativante no
seu equilíbrio em três partes, como se de um texto expositivo se tratasse,
simples no trato da linguagem, todavia reveste-a a devida temperatura da
palavra poética, aquilo que chamaria, na entendimento de Harold Bloom na Angústia da Influência, uma defesa da
poesia forte. Ilustrando o predito, na primeira parte de Escuro, a introdução (termo, este e os restantes da divisão
clássica, decidido por mim neste texto), intitulada “Claro-Escuro”, ALA faz um
percurso Das mais puras memórias: ou de
lumes, Entre mitos: ou parábola,
rumo ao «(…) enigma, / que pouco importa aos donos do equilíbrio, / mas que
dizem ser a fonte da poesia. / E é a fonte de onde a carne desperta, / nas
margens do humano.» (p. 18). Deste modo, inicia uma demanda, na segunda parte
do livro, o desenvolvimento, da génese do escuro que lhe trocaram, simples e
fundos questionamentos da existência, encontrando, na terceira e última parte,
a conclusão, Outra fala para Amar em futuro um tempo: O drama em gente: a outra fala – «Mas
sempre deste tempo / é o lume que as prende, a estas vozes, / e ao prendê-la as
solta / sobre o tempo –». (p. 67)
Em suma, a sua obra são interlúdios da ficção; daí a
necessidade de a voltar a ler.