AGUSTINA E O
AFORISMO
António Braz
Teixeira
Cuido não haver sido ainda suficientemente tida em
conta a circunstância de a cultura portuguesa do século XX se singularizar pelo
peso e significado que, no plano da expressão de ideias, nela representou o
recurso à forma aforística, por parte de autores como Pascoaes, José Marinho,
Sant’Anna Dionísio, Agostinho da Silva, Augusto Saraiva, José Bacelar, José
Rodrigues Miguéis ou Agustina Bessa-Luís, a maior parte dos quais hauriram a
sua mais visível e directa inspiração no que há de oracular na prosa de
Junqueiro, Raul Brandão e Leonardo Coimbra ou no Pascoaes de Verbo escuro e de O Bailado.
Do grupo de autores acima referidos, apenas os de Revisão, Reflexões sobre o homem e Aforismos
& desaforismos de Aparício acharam diversa inspiração. Enquanto as Anotações à margem da vida quotidiana,
se, de algum modo, retomam a esquecida lição setecentista das Reflexões de Matias Aires, a obra do
segundo apresenta carácter mais discursivo que, verdadeiramente, aforístico e,
a do terceiro, uma dimensão irónica, circunstancial e política própria do
jornalismo (em que teve origem) do que da reflexão mais séria e responsável.
Na obra de Agustina, a presença e a natureza do
aforismo, ora crítica e paradoxal, ora sentenciosa e sibilina, ora
interrogativamente metafísica, tem a sua mais directa afinidade com a do seu
visionário vizinho amarantino, de que fez enigmática personagem de O susto.
Com efeito, também em Pascoaes a súbita iluminação que
se exprime aforisticamente de forma súbita ou incontida, irrompe ao longo da
obra poética, das biografias, dos livros de memórias ou das finais tentativas
romanescas, O Empecido e Dois jornalistas.
Procurando explicar a frequente presença da expressão
aforística na sua obra romanesca, Agustina escreveu: “o meu pensamento estende-se
de uma maneira caótica e para o deter recorro ao aforismo”, a que diz sempre
haver dado grande importância, aditando que eles são uma “fuga ao pensamento”,
dotada de toda a seriedade, pois constituem “uma lição e não o pretexto para
uma pirueta”.
Nesta sua última afirmação, a escritora marca, com
inequívoca clareza, o que afasta o verdadeiro aforismo, mesmo quando se exprime
sob a forma de paradoxo, do mero exercício literário frívolo e gratuito, como
foi aquele que a primeira geração modernista por vezes praticou e de que são
brilhante e mundano exemplo obras como a Teoria
da indiferença, de António Ferro.
Ao afirmá-lo, Agustina aproxima-se de idênticas
posições de Sant’Anna Dionísio e José Marinho quanto à mais séria natureza do
aforismo.
O primeiro, cujo pensamento, de feição marcadamente
existencial e trágica, é constitutivamente intuitivo, enigmático,
interrogativo, fragmentário, “invertebrado”, encontrou no aforismo, na reflexão
e no solilóquio o modo mais adequado para se exprimir, notava que aquele tinha
sobre o pensamento discursivo a vantagem de formular perguntas em vez de propor
soluções, de ser um pensamento que não prossegue nem acaba mas constantemente
principia, “corrigindo-se e desmentindo-se sem pudor”.
Por seu tuno, o autor de Teoria do Ser e da Verdade pensava que o aforismo representava, “na
exposição das ideias, o máximo de descontinuidade”, o que, no entanto, não
significava “ausência de interior discursividade”, implicando, pelo contrário,
“uma discursividade realizada em planos diversos de intelecção, uma
discursividade da qual o pensamento tem a inequívoca presença mas se realiza
com uma face voltada para a luz e outra para a sombra”, para concluir que, com
a sua intrínseca discursividade, o aforismo se apresentava mais de acordo com a
condição do homem e a sua real realidade do que o pensamento discursivo.
Note-se que, tal como acontece com os autores de Rio de Heraclito e de Aforismos sobre o que mais importa,
também em Agustina a obra aforística, não só a reunida no volume intitulado Aforismos, como nos seus múltiplos
livros, não deixa de apresentar uma íntima coerência e uma funda e essencial
unidade, que lhe conferem um lugar único na produção literária em língua
portuguesa da nossa perplexa e contraditória contemporaneidade.