
FERNANDO PESSOA, HERMENÊUTICA JURÍDICA E RETÓRICA
“Un poète doit laisser des traces de son passage, non des preuves.”
René Char
Vários factores podem explicar o relativo desprezo de Fernando Pessoa pelas coisas jurídicas, numa vasta e variada obra que não está de modo algum isolada do político e do social. Uma das plausíveis explicações seria que, vivendo em tempos de legalismo (antes e depois do 28 de Maio), compreendera que a política, nessa lógica, é que comanda a juridicidade.
O texto em que o poeta mais se aproxima do Direito, não na sua dimensão grandiloquente que toca a política, ou a psicologia, ou a filosofia (desse tipo há relativamente abundantes fontes), mas na lhaneza do seu quotidiano burocrático e de especial exercício de um muito particular poder, parece-nos ser, tudo pesado, um requerimento. Nele vai Pessoa manifestar uma interessante hermenêutica, através de uma não menos interessante retórica.
Os textos literários, ou ensaísticos, em geral debruçam-se, diria Hervé Bazin, não vivenciam. Poderia Pessoa ter escrito poema ou elaborado ensaio (ou sacrificado a qualquer outro género) sobre direito, lei, justiça, tribunais, etc. Mas, ainda assim, seria o exógeno e distanciado mirar de um quid, sempre estrangeiro à sua lógica e metodologia. Num requerimento, pelo contrário, mesmo o mais amorfo requerente é partícipe da máquina do direito, que, no caso, em grande medida impulsiona (num certo contexto e num dado sentido).
No seu requerimento, Fernando Pessoa torna-se também “actor jurídico”, e não deixará de glosar as fórmulas e mesmo o tipo de raciocínio (por exemplo, remissivo e subsuntório) dos juristas tradicionais. Num primeiro momento.
É que, como veremos, a sua inteligência, depois de ter vestido a pele do requerente bem comportado, que se esforça por cumprir os requisitos, e de os demonstrar, não resiste, e – auto-sabotagem da inteligência contra o oportunismo da acção? – cremos que compromete a petição, já que, em vez de alinhar simplesmente nos quadros abstractos de uma prova formal, questiona logicamente a sua aptidão a provar efectivamente. Dando assim mostras precisamente daquilo que nenhuma burocracia quererá de um dos que aspira a entrar para as suas fileiras: inteligência questionadora. Pode ser-se inteligente, sim. É até conveniente que se seja um pouco. Desde que não se pense, desde que se não tenham (e muito menos se exprimam) ideias próprias. Tal como aconselhava a personagem de Machado de Assis ao filho que queria ver subir na vida.
(excerto)