UnB 50 anos: os caminhões da nova capital
Para Yvonne Jean, em memória
“A pedra celeste angular miraculosa, miraculosa.
Estabelecida por toda eternidade,
maravilhosa, maravilhosa.
Que comanda e reina convosco
Que comanda e reina convosco
Meu Deus, todo poderoso...”
(Jorge Ben Jor)
Por Eudásio Gaio de Sousa
Da miraculosa construção de Brasília, sonho combatido por alguns e construído por muitos, fala-se pouquíssimo de sua primogênita filha, a Universidade de Brasília. Ela, a nova universidade, também prestes a fazer seus 50 anos, merece nossas mais sinceras considerações.
Erguida para romper com as instituições federais vigentes no ensino superior da época, a UnB nasceu de uma orquestração que - sem sombra de dúvida - teve em Darcy Ribeiro a figura de articulador maio. Por outro lado, se tornou costume deixar no esquecimento outros personagens fundamentais à construção desta universidade. E fundamentais nas características que um dia esta universidade teve da genuína e genial UnB. Porque é preciso que se saiba e se diga: falamos da “ex-UnB”, de uma UnB muito distante disso que está aí colocando como UnB por comissões e comemorações.
Entre os esquecidos da maioria (e, o que é pior, da maioria do corpo docente e autoridades universitárias) está Rubens Borba de Moraes, bibliógrafo, bibliófilo, bibliotecário de uma estirpe que nunca mais existiu neste campus. Salvo uma ou outra avis rara. Foi Borba de Moraes um dos criadores desta que se convencionou chamar de biblioteca central dos estudantes, a BCE.
Nascida no início dos anos de 1970, esta tal biblioteca, a bibliotoca contral - nome que indicava a pichação agora apagada pelas “reformas” do campus - a nossa biblioteca tem sim muito de toca. Bibliotoca que guarda muita memória escondida e velada. Histórias que um dia se encaminharão para seu próprio jubileu. Está para ser escrita, por exemplo, a história da coleção de emergência que constituía o acervo da UnB. Reminiscências de uma época em que tanto os cursos de emergência, quanto o acervo da nova universidade, se localizavam na Esplanada dos Ministérios, mais precisamente o bloco I, local onde se situava o Ministério da Educação e Cultura.
Em pouco tempo, as aulas se normalizaram num campus que era só obra pra todo lado. A biblioteca foi se encaminhando para o SG-12, antigo local que hospedava um acervo que foi crescendo miraculosamente.
Cedo, já no ano de 1962, outras bibliotecas setoriais/especializadas foram se formando na universidade recém fundada. Entre tais bibliotecas, inesquecíveis, destacam-se os esplêndidos acervos reunidos nas bibliotecas do Centro de Estudos Clássicos (CEC) e do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses (CBEP). Ali, Eudoro de Sousa e Agostinho da Silva fizeram o que nunca mais se fez por áreas temáticas que, desde então, simplesmente hibernam minguando espalhadas por departamentos medianos. Antes fossem mediúnicos.
Rapidamente, essa coleção de emergência não deu conta da excelência que a UnB passou a exercer. Em 1963, bibliotecas particulares de grande valor foram compradas para engrandecer o patrimônio da UnB, quer dizer, daquela “ex-UnB”. Entre os miraculosos acervos, estavam as coleções de Oswaldo Carvalho, Hildebrando Accioly, Homero Pires, Pedro Moura, entre outras.
À guisa de esclarecimento, é impossível não registrar aqui que Homero Pires era colecionador de livros raríssimos, bibliófilo baiano refinado, detentor de uma das mais importantes coleções de livros de/sobre Rui Barbosa, a renomada ruiana de Homero Pires. Pires também colecionava castroalvina, camiliana, machadiana, etc. Muito do que se lê hoje nas humanidades foi de Homero Pires. Já Pedro de Almeida Moura, exímio germanista e professor paulista, foi colecionador de livros sobre/de Goethe. A goethiana de Pedro Moura chegou a ter 10.00 volumes. Tudo isso chegou para nós, quer dizer, para eles, em 1963. Muito do que ainda se lê sobre Alemanha e Goethe na UnB de hoje foi resultado dos estudos e pesquisas de Moura.
Daí a coisa cresceu rápido. Como crescem as bibliotecas, que são organismos vivos. Em meados da década de 1960, depois do Golpe, pouco tempo depois da morte de John F. Kennedy, ofereceu-se à UnB, por iniciativa da Embaixada dos Estados Unidos, um acervo em memória de Kennedy. A cerimônia foi um desastre. Estavam lá Honestino Guimarães, entre outros, para vaiar o bibliotecário e professor Edson Nery da Fonseca, que dedicou seu belo discurso a puxar o saco do embaixador John W. Tuthill. Cenas que não se conta pelo campus. A crítica, que envolvia a situação da UnB após 1964, se voltava também contra a guerra do Vietnã. Os livros da coleção Kennedy levariam a pior e se estigmatizaram para alguns. Alguns. Porque a maioria, claro, não liga para estes detalhes. Deveria?
Fato é que, com a centralização do acervo, ou seja, quando os livros (após rápida estada na Sala Papiros) descem do SG – 12 para o atual prédio da biblioteca central, foi fácil arrumar um lugar para colocar os milhares de volumes dos extintos centros (CEC e CBEP) fechados pela ditadura. O prédio construído por Galbinski, entre outros renomados arquitetos, se tornou um grande copo d’água em que a derradeira gota derramou não em cima, mas na base. Aos poucos foram descendo para o depósito da biblioteca milhares de obras, tudo aquilo que era mal visto, indesejado, incompreendido pelas autoridades, pelos leitores e pelos especialistas de plantão da bibliotoca.
Mas não durante a década de 1970. É preciso dar a César o que é de César. Ninguém fez mais por uma biblioteca do que um certo capitão de mar e guerra que era PHD em Física Nuclear. Até a vigência do regime militar, os livros ainda valiam de alguma coisa no campus Darcy Ribeiro. O próprio setor de obras raras da bibliotoca, dizem, foi criação do Azevedo. Se ele não tivesse partido dessa para uma melhor, há alguns meses, poderia confirmar (ou não) estas poucas linhas.
A primeira biblioteca a descer para a toca, aparentemente, foi a de Carlos Lacerda. Seu acervo chega na UnB em 1979. Pobre Lacerda! Lacerda que era tão contra a UnB e Brasília, teve por fim que ver seu acervo parar em depósito sujo e mofado, encostado em molhadas paredes. Apenas em 1999 alguém resolveu retirar das caixas documentos que se tornaram o Arquivo Carlos Lacerda, menina dos olhos do setor de obras raras da UnB cinquentária.
Antes dos livros de Lacerda chegarem ao depósito, livros reunidos por um também bibliófilo, colecionador de renome e leitor voraz, dono de editora, etc, antes de Lacerda inaugurar o depósito de nossa bibliotoca, só havia ali o “Piauí”. Trata-se de um piauiense que trabalhava com marcenaria. Com a morte do Piauí, o depósito ficou à mercê do descaso. Os militares sabiam que o terreno onde a bibliotoca foi construída era cheio d’água, uma mina de água[1]. Os pseudo democratas que foram aos poucos tomando conta do campus ignoraram o fato, entulhando o segundo subsolo da biblioteca com tudo quanto é coleção. Das mais raras. Daquelas que ninguém quer/saber ler. Não só a plebe é rude e ignorante.
Para o mesmo saco foram os livros de Homero Pires, a goethiana de Pedro Moura, obras que foram conseguidas pelo próprio Darcy, muitos dos livros do Lacerda. Não era difícil encontrar lá, até um dia desses[2], livros da coleção de Eudoro de Sousa, livros sobre Portugal adquiridos por Agostinho da Silva junto à Fundação Calouste Gulbekian. Enfim, um mar sem fim, um mar de livros em baixo de água, mofo e sujeira. Por pouco os livros de Cassiano Nunes não foram parar também ali, no bueiro que já conta três décadas, por baixo.
Como se não bastasse esse encosto sem fundamento, descaso que sempre terá suas razões biblioteconômicas, arquitetônicas, blá blá blá, fenômeno comum em muitas outras bibliotecas deste país; como se não bastasse a ignorância de certos bibliotecários que foram tomando o poder durante a década de 1980; como se não bastasse a conivência e passividade de certos professores: em 2007, durante a última greve que durou quase três meses, toneladas de obras foram jogadas no lixo. Ouçam!
O evento ficou conhecido como a devassa de 2007. Também nomeado como “mutirão de limpeza”, o procedimento se passou em 2007, quando simplesmente se pegou tudo que havia no depósito, quase-quase-tudo, espólio destes antigos acervos, livros raros, livros para restauro, livros esquecidos, alguns livros sobre Trotsky, enfim, livros de uma universidade como a UnB, tudo para o lixo que ficava escondidinho atrás da copa da bibliotoca. Bem na frente do Setor de Conservação.
Caminhões de uma empresa recicladora pegava o material e picava,no mesmo dia, comprando tudo da biblioteca no peso: 24 centavos/kg. Eis o destino de boa parte do acervo mais importante que já existiu na Nova Capital. Acervo importante porque conta a história bibliográfica (e política) da UnB. Histórias e anti-histórias.
Aos poucos a comunidade universitária foi se esquecendo de que ali não se podia colocar livros. Aos poucos foram se esquecendo dos livros que lá estavam. Na última greve, se esqueceu que aquilo tudo tinha importância.
A completa desconexão entre o Centro de Documentação (CEDOC), o Departamento de Ciência da Informação e Documentação (CID) e as recentes diretorias da nossa bibliotoca, permitiram que isso acontecesse. Durante 15 dias da greve de 2007, se deu nos porões da UnB um bibliocídio sem tamanho, memoricídio que o próprio Magnífico, àquela altura recém empossado, acabou por esconder. Afinal, é uma bomba miserável para um nobre reitor dedicado historicamente aos direitos humanos e coisa e tal.
O ilustre e atual reitor terminou por esconder o caso. Foi mais conveniente colocar na direção da toca uma bibliotecária, coisa que não acontecia há vinte anos. Ele próprio escondeu por 20 anos a biblioteca que herdou de Roberto Lyra Filho, biblioteca que também ficou isolada e inacessível nos porões da bibliotoca, pegando umidade em grau altíssimo e mofo descomunal.
É pouco para os nossos 50 anos?
Não é miraculoso o fado de nosso patrimônio?
Dizem que os caminhões pararam de sair da bibliotoca, quinzenalmente, repletos de livros. Dizem. Vejamos como serão nossos próximos 50 anos.
[1] Informação que consta no próprio Programa para o projeto do edifício da biblioteca central, livro editado em 1973, a partir de tradução do texto de Frazer G. Poole, americano, claro.
[2] Pois de um tempo pra cá, por força de um projeto relâmpago que se deu na bibliotoca, alguns livros vem sendo carimbados com etiquetas novinhas, como se sempre estivessem estado ali nas estantes. Se tornou praxe entre os bibliotecários esconder a história do livro e da nossa bibliotoca.
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