O caminho para a Frátria faz-se com todos.
Faz-se em todos e em cada um.
Aqueles que se nos opõem são importantes marcos no caminho. Mostram-nos que ainda não trilhámos o trecho mais decisivo da nossa jornada, o que leva ao verdadeiro encontro. O encontro com o melhor em nós. Que será o contacto, também, com o que há de melhor nos outros.
Um movimento como o MIL não deve ter portas nem janelas.
E há uma coisa que ninguém deve esquecer, é que talvez as adesões, algumas delas pelo menos, se ficam a dever ao Manifesto, mas também às pessoas. Às pessoas que se manifestaram, e manifestam, que dão tudo o que podem pela afirmação do projecto. Todas elas são importantes. Todas.
É com isto em mente que quero publicar aqui um texto que já escrevi há bastante tempo. Também é verdade que as palavras nos saem mais límpidas do que as acções, mas isso não servirá para denegrir as palavras. Mesmo depois dos "tombos" poderão continuar a servir-nos de guia. No meu caso é isso que penso.
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Se nós tivéssemos plena consciência do que é um ser humano, o nosso deslumbramento perante qualquer um dos nossos semelhantes, qualquer um, seria duma grandeza tal que não resistiríamos a sentir-nos abraçados por uma força maior, que nos infundiria uma alegria tão intensa que nos percutiria quase até aos limites do suportável.
Trataríamos cada uma das pessoas com quem falássemos com a mesma deferência com que os súbditos tratam um rei, com que os fiéis tratam o papa, por exemplo. Pois o que têm esses homens a mais que qualquer um dos demais?
Do mais humilde sem-abrigo, ao mais poderoso dos homens, cada homem é uma centelha divina que traz o selo do infinito impresso na sua interioridade. Isto apesar das máscaras, dos muros, das fugas, das mentiras, das negações.
Se pudéssemos ver-nos, a cada momento, a partir do ponto de vista de quem está pronto a partir, de quem neste mundo não tem uma morada definitiva, de quem, enfim, tem que construir uma frágil jangada para enfrentar as correntezas da vida, daríamos muito mais valor ao que somos, em verdade. E veríamos os outros à luz dessa verdade radical.
Os bens materiais, o estatuto, as pequenas grandezas que insuflam o nosso ego com um falso sentido de superioridade, tudo isso tem a marca da efemeridade e acabará por se desfazer em pó. No entanto, muitos de nós guardamos no nosso coração recordações de coisas sem utilidade, simples, gráceis e altamente siginificativas: o sorriso duma criança num dia em que estávamos tristes, o primeiro beijo, um encontro com alguém que nos marcou, uma festa em que nos sentimos amados, um presente que nos fez reconhecer o valor da amizade... Se isso permanece, apesar da passagem dos anos, das mudanças que a vida foi trazendo, do envelhecimento, do cansaço, é porque é feito duma matéria que não se corrompe, antes nos enriquece. Talvez isso fique connosco durante mais tempo do que conseguimos imaginar...
E contudo há coisas que fazemos que nos impedem de ter mais experiências deste tipo. De cada vez que nos fechamos ao diálogo, estamos a criar barreiras que vão construindo uma prisão onde a nossa alma vai perdendo o uso das suas mais nobres capacidades. Tal como existem órgãos no nosso corpo que se atrofiam com a falta de exercício, na nossa alma há funções que ficam adormecidas. As consequências disso na nossa vida são tremendas, uma vez que nascemos com uma estranha característica: podemos tornar-nos naquilo em que acreditarmos.
Se acreditarmos que não temos coração e que a vida é uma competição em que devemos tentar tudo para sermos melhores que os outros, então seremos seres com uma deficiência cardíaca indiagnosticável pela medicina, mas que nos envenenará os dias e nos transformará em seres febris com uma vida miserável e árida. Por mais que tenhamos, estatuto, dinheiro, etc., etc., há um vazio sempre a crescer que acabará por nos precipitar para uma morte sem remédio e profundamente injusta, pois, aos nossos olhos, morrer será uma inconsistência da vida, irracional e imerecida. Mas está errado chamarmos morte apenas ao fim do processo, pois a morte é exactamente esse processo de mumificação a que nos submetemos ao longo da vida, primeiro em virtude daquilo a que se chama educação e, depois, através das escolhas egóticas que vão levando a que nos resumamos a uma animalidade industrializada.
Um ego entre egos, num mundo de fantasmas que odeiam a vida.
E há muita crueldade na forma como rejeitamos o valor intrínseco dos outros. Somos condicionados pela sociedade a conformarmo-nos às tendências dos grupos sociais que integramos. Vivemos muito marcados pela opinião dos outros e é muito fácil ir aí buscar uma pauta para dirigirmos as nossas escolhas. E assim rendemo-nos à conformidade e aqueles que não cabem nela são encarados como apátridas e indigentes. Muitos artistas, por exemplo, sofreram na pele a rejeição dos seus contemporâneos, precisamente devido ao seu inconformismo. Se alguém recusa viver sob os ditames do socialmente aceite, está a pôr em causa uma ordem estabelecida. Essa ordem visa transformar cada ser humano numa força de produção. Tal e qual uma máquina.
Ora, a produção está longe da criação.
De acordo com grande parte das tradições culturais o universo foi criado e não produzido. Mesmo o demiurgo do Timeu de Platão é um artífice, um criador e não um operário, mero produtor (re-produtor). E cria de acordo com modelos eternos. Pois criar é trazer à vida. Produzir é colocar no mundo, atirar para o mundo algo. Quem cria tem que nutrir, tem que se dar à sua criatura, ou criação. É um acto de amor. "Amor" num sentido pleno, sem exclusividade e sem os entraves que normalmente colocamos à força expansiva que se esconde nessa palavra tão dita, mas tão mal-dita.
Se as fábricas criassem não poluiriam, nem necessitariam da máquina imensa de produção de desejo a que chamamos publicidade. Também não pagariam salários de miséria. Na verdade não há dinheiro que pague o acto de criar.
O inconformismo dos artistas, dos poetas, dos loucos, dos génios, das crianças, é uma manifestação do poder criador. Todos os homens nascem com esse poder, pois o seu nascimento é um facto tão importante na história do universo quanto o big-bang de que fala a física. Nenhum homem nasce fora dos desígnios do universo. Todos os homens são convocados para acrescentarem algo, para ajudarem à Criação.
Poderá ler-se o texto integral aqui.
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E chamo este texto para aqui, precisamente porque considero que o MIL, desde a sua fundação, responde de forma muito percuciente à necessidade de criação e se dirige, precisamente, aos criadores, tenham eles o estatuto que tiverem.
E é claro que o monolitismo é negativo, por isso o debate franco e fraterno é sempre necessário. É sempre necessário procurar a raiz das coisas. É lá, no fundo, que estamos todos enraizados. Nesse fundo sem fundo. Mas é aí, também, que custa mais escavar. Porque as raízes têm nós, têm-nos, não as temos. E esses nós são mais fortes do que julgamos, nós somos mais fortes do que muitas vezes acreditamos. Basta que não percamos o sentido do que nos desune, porque talvez seja isso mesmo que prepara os encontros mais decisivos.
7 comentários:
Em ti me encontro, meu Amigo. Felicito-me por te ler novamente, senti a tua falta na Serpente. Mas adiante..
Não tento concordar contigo, porque ambos buscamos o acordar individual, e é esse que nos conduz à verdadeira concórdia entre Nós.
"Basta que não percamos o sentido do que nos desune"
Entendo que o tenhas dito num outro contexto, mas não resisto a apontar que é impossível haver sentido na desunião, o sentido, no único sentido que existe realmente: é o dos sentidos do corpo. Qualquer sentir implica união. A desunião é mera ausência.
Beijo sentido - dentro do possível, aqui.
Eu sei Anita.
E sinto tudo o que dizes.
E a concórdia, sim.
Mas cada qual tem que lidar com a sua treva interior. Por vezes não é fácil.
E esse teu apelo ao corpo é muito importante, muito mesmo. Não há metafísica nenhuma, autêntica, na metafísica des-incarnada.
E bem lá no fundo nunca há desunião. Tudo é solidário com tudo.
Mas há momentos da nossa vida em que o turbilhão é praticamente total. Aí, mesmo que no centro de onde nos irradiamos haja paz, há que esperar e ver. Quando a poeira assenta, o que fica. O que há. E, depois, seguimos os sinais. Que podem não ser sinais, e, aí, podemos voltar a bater no fundo.
Esta vai e vem pode acabar por deixar marcas. Já deves ter reparado no rosto dos pescadores da Nazaré, ou daquelas praias adjacente, não é um rosto que seja usável pelas pessoas "comuns", tem muitas marcas de que nós nem imaginamos do que sejam. E quando se fazem ao mar talvez para eles seja como se fosse sempre pela primeira vez.
Eu acho que uma das formar de amar poderá ser o retirarmo-nos. Mas isso é polémico.
Mas, sim, há uma Anita a brilhar a brilhar na escuridão da minha noite. E isso é bom.
E "dentro do possível", talvez o possível não tenha dentro nem fora. :)
Nós se calhar é que estamos sempre dentro do possível. E talvez seja importante visarmos o impossível e, a partir daí, darmos largueza às possibilidades para que elas partam a casaca que as separa do real e germinem.
;)
Uma estrela grande!
Deixa-a cair assim, lentamente...
:)
Caro Paulo Feitais
Da próxima vez que receber um daqueles e-mails "assassinos", vou-to reenviar, para testar o teu grau de tolerância e inclusão...
Eu também me considero uma pessoa tolerante e inclusiva, apesar de alguns ocasionais deslizes de linguagem, mas há limites...
O MIL tem que ter janelas e portas. Se não, há muito que tinha acabado...
Vê, por exemplo, este blogue: se nós não tivéssemos imposto a moderação de comentários, isto há muito que já se tinha tornado irrespirável...
Abraço MIL
É Renato.
Isto tudo faz parte. E deslizes todos temos. Mesmo.
A moderação dos comentários é muito importante.
Eu acho que temos que saber construir as bases dum entendimento. O que é muito difícil. Mas isso faz parte da vida.
Não vou comentar e-mails aqui, porque acho que isso devem ser universos separados. Por uma questão de princípio e até de imagem do blogue.
Aí as portas e as janelas devem ter um porteiro muito cuidadoso.
São vias diferentes, com fins e formas de funcionamento diversos.
Mas é claro que no meio estamos nós, estão as pessoas. E isso é muito difícil de gerir.
E é verdade que quem não se sente não é filho de boa gente. Mas há muitos sentidos no que sentimos.
E eu as pessoas que vi ao longo desta caminhada da NA e do Mil não as acho incapazes de concórdia. Mas isso é uma coisa que não é minha, é de cada um dos envolvidos, ou não.
Agora que é verdade que este projecto poderá caminhar muito melhor se as energias, que já vimos que são duma intensidade muito elevada, forem canalizadas para um mesmo propósito, é verdade. E há muitas coisas que podem ser trazidas para aqui, e até debatidas acaloradamente, de peito aberto.
Isso é bom.
Mas é assim, eu só estarei aqui enquanto todos estiverem. E é bom que aqueles que não se sentem bem a colaborar aqui, que venham. Provavelmente há muitas pessoas que nunca postaram nada aqui por não se sentirem à vontade. E, por isso, é bom que venham.
Quanto a mim, eu não guardo ressentimentos, isso não é coisa que se guarde...
Um abraço fraterno!
Acho que o Paulo Feitais devia aderir a um movimento religioso, enganou-se na porta
Disto podes estar certo: estou cada vez mais farto desta trampa toda!
Conheces a parábola chinesa dos cães e do osso? Se não, também é fácil de adivinhar... a matéria narrativa é mais importante do que os recados morais - sempre. Não fosse a moral para o Wilde «um maneirismo de estilo insuportável num artista».
Mas também te conheço o suficiente para me dispensar de ter de tornar público o que gostei e não no texto - de que, no conjunto, gostei muito.
Abraço!
P. S. Estou engripado e sem cabeça para responder a mails - mas assim que puder e for oportuno; a Roca parece-me bem, levava também a minha máquina de registar efemeridades belas do mundo, podíamos almoçar, recordar coisas e passar uma manhã e tarde agradáveis, como dois amigos e dois poetas, sem nenhuma outra merda das que azedam a alma e o coração.
P. P. S. Devias indicar as fotos de que és autor.
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