O CANTO E A ESCUTA
Escrevo este texto à beira de uma tese.
Daquelas teses de Universidade. Daquelas que se querem muito depuradas,
explicadas, argumentadas, arguidas perante júris. Mas o verdadeiro júri não é
esse. O verdadeiro júri será a preservação da memória de Dalila.
Escrevo este texto à beira das
Lágrimas. Que és, Dalila? O que foste para mim? O que resta de ti senão esses
textos de uma contenção explosiva, de um amor louco pelo céu? De um amor louco
pela terra? Que me fica senão reler-te, e reler-te uma vez mais? Que me fica
senão o desespero de nunca te conhecer plenamente?
Teu Verbo é a Luz que espalhaste pelo
mundo. Por um mundo que ainda não te
conhece, como preço a pagar de teres conhecido tão bem o Outro Mundo.
Que efeitos tem a memória em nós e que
efeitos têm os teus textos na nossa memória e que efeitos tem a tua Experiência
na experiência dos outros? Como é possível transformar, como transformaste, as
letras em experiências? Acaso o
misticismo se pega como uma doença? Colar-se-á ele a nós à medida que as tuas
palavras ecoam no espaço silencioso do nosso Ser?
Só é possível ler-te no silêncio que
vive dentro do silêncio. Um silêncio duplo.
Almada Negreiros disse que toda a arte
é uma estratégia para a Poesia, mas tu, Dalila, foste ainda mais longe nessas
voltas espiraladas da criação. Porque nasceste já em Poesia, porque vivias em
Poesia, porque já eras Poesia
simplesmente por existires, só te sobrava ir mais além e, como o disseste.
“Viver na caça ao sobrenatural”[1].
Que se passou contigo que já não vias
simplesmente com os olhos mas vias com todo o corpo? Que diálogos ousaste com
os anjos? Com que cores te era desvendado o mundo?
Não, não há teses a fazer sobre ti,
apenas cores novas acabadas de nascer a cada página virada.
A tua obra é a revelação da revelação.
Sim, poderia falar dos teus ensaios e
da graça com que num golpe de asa aniquilaste o tradicional Ensaio. O ensaio
histórico, literário, antropológico não mais foram os mesmos depois de ti.
Ousaste recusar o pragmatismo do Verbo enquanto percorrias esses temas,
pousando os olhos da alma na História, na Literatura, na Antropologia. O
Ensaio, contigo, deixou de ser um discurso para se tornar numa experiência. Que
outra coisa poderia ser se as palavras para ti eram chamas vivas? Portugal
deixou de ser objecto, objectivo na análise, distância segura e controlada para
irromper por nós adentro. Para se tornar parte do nosso Ser. Portugal passou a
ser Amor.
Escrevo este texto à beira da Alegria,
afinal. Como o resultado da tua obra é a Alegria vivida na liberdade da vida.
Falo em ousadia quando falo de ti. Mas é uma ousadia antiga, uma ousadia que
vem do fundo dos tempos, uma ousadia que é toda escuta. Uma ousadia que caminha
pelas ruas das cidade e a transmuta livremente em algo mais.
Mas essa transmutação não mais era do
que um Regresso: “E todo o acto de conhecimento poético, sua transmissão, é um
acto paradisíaco repetido”2.
Não há o isolamento místico in
extremis. Não há carmelitas descalças, nem montes Athos, nem Cartuxos. Não
há um muro entre ti o mundo. Há um abraço fundo nele. Não há desvios nem
elevadores de renúncia numa qualquer auto-estrada rápida para o céu. Há os
passos que se dão na terra, as viagens por ela, a contemplação dela, o silêncio
que nela reside. Não há mosteiros de retiro de pedra a cal, há um Templo
interior que se ergue como espelho da tua alma. Há um Templo que abarca a terra
toda. Há uma volta diferente no fim da cornucópia desta abundância de
totalidade. Há um retirar o excesso do mundo e devolvê-lo intacto, no seu
centro numa bandeja de ouro vivo.
Há dádiva mais do que desejo. Há desejo
mais do que exigência. Há exigência mais do que missão. Há missão mais do que
função. Há entrega mais do que renúncia. Há renúncia mais do que desejo.
Sim, viajaria assim indefinidamente por
estes paradoxos excessivos só para te tentar definir.
Há uma sombra que se adivinha e que
remetes para o território do mal. E insistes que o mal é uma ilusão. Os
espinhos não fazem a rosa. Apenas as suas pétalas são a razão do seu perfume. E
o que fica é o perfume da manhã fresca que foi a tua vida.
A tua obra tem o encantamento
vibratório da música. Só que ainda mais potente. Como se a tua vida tivesse o
dom de ecoar nas vidas dos leitores que te escutam. Ler-te é escutar e nessa
escuta intuir, num primeiro tempo, os vários mundos, num segundo tempo,
descobri-los, num terceiro tempo, deixar que eles se manifestem como campainhas
coloridas ecoando nos momentos de pausa que são sempre recordações das tuas
palavras. Essas campainhas ecoam num jardim quando uma ave pousa, e é mais do
que uma ave, é um movimento esvoaçado do cosmos; ecoam num olhar de uma criança
que esconde e revela a presença de um anjo; ecoam à entrada de uma Igreja que é
afinal o portal para a fusão com o sagrado. Essas campainhas, almas-fadas das
tuas letras, são sempre experiências, tão seguras, tão verdadeiras como um
mergulho nas águas quentes que percorrem o corpo. Têm uma presença tão real
como o sabor de um fruto e, por isso, transcendem a música no que esta tem de
etéreo.
O teu misticismo é carnal devido ao
excesso de presença do Outro Mundo. Ele torna-se manifestação mais do que
transcendência. Farias Platão pensar, repensar de novo… o teu platonismo não é
platónico pois possuí a força da terra e o trovejar do sagrado.
A fluidez das tuas palavras é igual ao
rigor com que as escolhes. E lamentas que não haja palavras que digam o Absoluto que viveste.
“Não forçar nem intervir. Esperar e
escutar. O melhor é não fazermos nada por nós: abandonarmos tudo a essa força,
deixarmo-nos trabalhar por ela.
Estar só atentamente.
E quando ela nos atira o peixe, quando
ele salta ao ar das águas matinais do mar, das águas então acordadas,
cintilantes à primeira luz do sol, rápido, lançar-lhe o arpão.”3
Sim, entre a quietude e a acção total,
arrebatada, entre a poesia e a razão, percorrendo a trave que segura o pratos
da balança, assim se nos podemos situar se quisermos compreender-te. Porque
renunciando não renuncias e aprisionando não aprisionas, só assim é possível
“investigar o absoluto”4.
Escrevo à beira do Amor, como se
estivesse sempre à beira de te encontrar, numa espécie de angústia serena que
adivinha a profunda paz. À beira deste mar imenso que é o mistério da vida.
Escrevo para que te lembrem. Para que te leiam. Para que te escutem. Para que
te experimentem numa chamada de atenção urgente. Neste momento sou um pássaro
que te canta, nos outros tempos um pássaro que te tenta escutar. Cantar-te é sagrar-te, conseguir escutar-te é
já Ser.
[1] Pereira da Costa,
Dalila, Os Jardins da Alvorada, Lello & Irmão Editores, 1981, pág.
40
2 Op.
Cit. pág. 78
3 Op. cit. pág. 95
4 Op. cit. pág. 90
Cynthia Guimarães Taveira