O provincianismo de alguma crítica
Qualificou, Fernando Pessoa, o provincianismo como o nosso “mal superior”, referindo Eça de Queiroz como “o exemplo mais flagrante do provincianismo português” [in “Portugal entre Passado e Futuro”], o mesmo Eça que Agostinho da Silva, em convergência com Pessoa, acusou de ter criado “um ambiente de desprezo pela pátria” [in “As responsabilidades de Eça de Queiroz”].
Esse provincianismo, que consiste em desprezar tudo o que alegadamente é próprio da nossa tradição filosófica e cultural, ficando embasbacado com todas as modas que vêm de fora, por mais supérfluas que sejam, tem sido, cada vez mais, justiça seja feita, erradicado das nossas Universidades, onde – falo, em particular, dos Cursos de Filosofia, que conheço melhor –, hoje se estudam, sem quaisquer complexos provincianos, os autores da Filosofia Portuguesa.
Esse provincianismo subsiste, contudo, nalguma “crítica”, sendo António Guerreiro [AG] um dos seus exemplos mais flagrantes. Em Abril deste ano, escreveu uma diatribe contra a Filosofia Portuguesa em geral e a Revista Nova Águia em particular, onde procurava assustar os mais incautos, falando até de “máquina mitológica que constrói uma identidade, reduzindo o passado — com o qual mantém uma relação viciada — a uma papa indistinta de destino e devir, de passado mítico e presente incognoscível” [Atual, 30.04.2011]. Caso para dizer: “Que horror!”.
Agora [Atual, 08.10.2011], volta de novo à carga contra “a tribo da chamada ‘filosofia portuguesa’” [sic], tomando como pretexto uma obra de Miguel Real [MR], recentemente editada na Imprensa Nacional – Casa da Moeda [INCM]: O Pensamento Português Contemporâneo (1890-2010). Esta obra, com mais de um milhar de páginas, procura ser sobretudo um mapa do pensamento filosófico português contemporâneo, detectando as suas principais tendências. Pois bem: AG denuncia nesta obra a “vontade de categorizar, atribuir epítetos, organizar em gavetas e incluir em listas”. Como se não fosse esse, precisamente, o intento maior da obra: construir um mapa. Isso, por si só, torna a obra muito meritória: até agora, não havia um mapa do pensamento filosófico português contemporâneo com esta abrangência e minúcia. Agora – mérito de MR – já há. Por isso, lhe devemos estar muito gratos.
Decerto, poderemos discordar de algumas perspectivas – eu também não me revejo nalgumas delas. Mas é da mais elementar justiça reconhecer que MR procurou fazer-nos um mapa o mais abrangente e minucioso possível do pensamento filosófico contemporâneo, incluindo nele quase todos os nomes (como sempre acontece neste tipo de obras, há alguns nomes não referidos). Para o constatar, basta consultar o índice onomástico da obra (pp. 1009-1022). São cerca de um milhar de nomes.
AG acusa ainda MR de não nos dar uma visão aprofundada de muitos desses pensadores. Como se MR não o tivesse já feito em obras em que se dedicou, nomeadamente, a autores como António Vieira, Agostinho da Silva e Eduardo Lourenço. O que aqui se procurava não era, de todo, isso – uma perspectiva aprofundada sobre os autores do pensamento filosófico português contemporâneo –, mas, o que é muito diferente, uma visão panorâmica sobre “os veios nervosos e os traços singulares da reflexão filosófica escrita em Portugal nos últimos cento e cinquenta anos”, conforme se pode ler na contracapa do livro. Escamotear isto só pode denotar curta inteligência ou extensa má-fé.
AG que escolha a “etiqueta” que mais lhe convém mas eu optarei pela segunda. E isto atendendo ao que AG escreve ainda sobre alguns autores que MR destaca – falo, em particular, de Carlos Henrique do Carmo Silva [CHCS] e António Braz Teixeira [ABT] – a este respeito, uma nota pitoresca: AG denuncia que MR escreve Luísa Neto Jorge e não Luiza Neto Jorge mas comete erro similar com o nome de António Braz Teixeira (escreve “Brás”). Assim, procura ridicularizar o facto de MR considerar a obra de CHCS como “a mais importante produzida em Portugal, no último quartel do século XX”, referindo apenas o título “Experiência Orante em Santa Teresa de Jesus”. Percebe-se bem a intenção: “Vejam bem quem MR escolhe como a grande obra da Filosofia Portuguesa! Uma obra de evidente teor beato…”. Trata-se de má-fé porque, manifestamente, se procura induzir o leitor em erro. CHCS, sendo Professor de Filosofia na Universidade Católica Portuguesa, é tudo menos um autor beato. Qualquer pessoa minimamente culta sabe isso.
Mas a má-fé não acaba aqui. Atinge o seu auge no último parágrafo. Neste, AG expressa o seu “escândalo” pelo destaque dado por MR a ABT: “promovido a ‘pensador’ de vasto alcance”. Razões para tal? AG só encontra uma: ABT “editou este livro e tem feito do catálogo da editora do Estado um bafiento e despudorado centro de irradiação e difusão do ‘pensamento português’”. Na sua despudorada má-fé, AG consegue até manipular o calendário: ABT não foi o editor da obra pois saiu da INCM, onde era Presidente, em 2008 (!). Mas mesmo que se tivesse mantido: não seria de todo por isso que MR promove ABT “a ‘pensador’ de vasto alcance”. AG conhece, por acaso, a extensíssima obra de ABT? Ou é daqueles críticos que gosta de dizer “não li e não gostei”?
O provincianismo crítico de AG é, pois, evidente. Contra esse provincianismo, muito bem andou ABT em ter “feito do catálogo da editora do Estado um despudorado [despudorado sim, bafiento não] centro de irradiação e difusão do ‘pensamento português’”. Devemos homenageá-lo por isso. Se o Estado tem uma Editora – como eu considero que deve continuar a ter – é precisamente para isso. AG, pelos vistos, considera o contrário. Provincianamente, AG julga que a Editora do Estado não deve irradiar nem difundir o pensamento português. Ou talvez sim, desde que com (algum?, muito?) pudor…
Num texto a meu ver menos feliz, pela sua equivocidade, que de resto aparece no livro, falou MR da “morte da Filosofia Portuguesa”. Também aqui AG discorda de MR. Neste caso, faz, na minha perspectiva, muito bem. Esperemos então pelo próximo ataque à “tribo” (sic). Pessoa tinha, de facto, razão: o provincianismo é mesmo o nosso “mal superior”. Sobrevive a tudo. Nesse aspecto, mas apenas nesse, é como a Filosofia Portuguesa. É, decerto, o seu mais genuíno par antitético.
Renato Epifânio
Membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
Co-Director da Revista NOVA ÁGUIA
Presidente do MIL: Movimento Internacional Lusófono
P.S.: O presente texto foi enviado para o Jornal "Expresso", que recusou publicá-lo, dando assim cobertura à manipulação crítica e factual.