A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

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quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O que é Portugal? - II

II
Para quem esteja habituado a pensar Portugal como uma id-entidade, seja qual for a determinação fundamental que lhe der – espiritual, material, histórica, cultural, política, sócio-económica, etc. - , a análise anterior parece haver conduzido a uma dissolução de Portugal, a uma anulação da sua existência, que aparenta contradizer o mais elementar senso comum e a evidência de que há efectivamente alguma coisa de diferenciado, singular e concreto nisso que se concebe e designa como Portugal.

Se analisarmos bem, veremos que assim não é e antes pelo contrário. A demonstração da não constituição de Portugal como id-entidade, em si e por si, fora da sua conceptualização e id-entificação mental e emocional, que é uma identificação do construtor com isso mesmo que constrói, a demonstração de que, nesse sentido, nunca houve Portugal como uma entidade separada dos sujeitos em devir que o constroem e se constroem pelo pensamento, pela palavra e pela acção, não pode obviamente ser uma destruição ou anulação do quer que seja, pelo simples facto de não se poder destruir algo que nunca existiu, não existe e jamais pode vir a existir. O despertar de um sonho ou o dissipar de uma miragem não destroem nada de realmente existente e, na verdade, nem sequer destroem uma ilusão: apenas deixam de a alimentar, apenas designam o fim da construção, inconsciente, de uma falsa percepção do real, apenas assinalam o cessar de uma ficção da consciência pelo seu reconhecimento como tal. Do mesmo modo, o despertar do sonho ou da miragem de um Portugal substancial, existente em si e por si, dotado de uma id-entidade autárquica e imutável, um Portugal-ser e essência, não destrói nada, porque nada disso há para destruir. Analisado e revelado na sua natureza autêntica, Portugal não passa do ser ao não-ser, revelando-se antes a impertinência dos conceitos de ser e não-ser para pensar a natureza profunda das coisas, sejam nações ou indivíduos.

O que se revela então como a natureza autêntica disso que designamos, pensamos e vivemos como Portugal e que antes concebíamos de forma identitária? Precisamente a mesma natureza de tudo o mais: um devir, um fluxo, um processo, uma metamorfose. O que não quer dizer que, na trama global do devir do mundo e da consciência, esse devir, fluxo, processo e metamorfose a que chamamos Portugal não assuma, a cada instante e ao longo de períodos mais ou menos contínuos, certas diferenciações e singularizações específicas, sempre em mutação e inseparáveis daquilo de que se destacam e das consciências que as apreendem e vivenciam. Essas diferenciações e singularizações momentâneas, elas mesmas sempre em gestação e metamorfose, não podem, por isso, jamais pensar-se como diferenças e singularidades definidas, definitivas e constitutivas, enquanto propriedades intrínsecas ou modos expressivos de uma alma, espírito ou ser nacional, no sentido da id-entidade substancial e essencial cujo equívoco denunciamos. É aliás livres de todas as categorias e (pre)conceitos identitários que podemos aceder mais intimamente à experiência dessa diferenciação e singularização, diríamos energética, do processo que designamos como Portugal, patente na paisagem, nos animais, nos rostos, nos afectos, nas falas, nos odores, nos sabores, nas tradições, inovações e aspirações, em tudo isso que, livre de o isolarmos como nacional, nos entreabre um Portugal mais profundo, um outro Portugal, trama de cintilações em devir do jogo do mundo. É quando não pensamos identitariamente que se respiram as atmosferas e se revelam as tonalidades mais íntimas e profundas, complexas e múltiplas, sempre em mutação e interacção, dos povos, nações e culturas.

Que Portugal seja um devir, um fluxo, um processo e uma metamorfose é precisamente o que a história política mostra, uma mutação contínua, complexa e interdependente onde o fixismo utilitário demarca períodos cronológicos que na verdade não são senão recortes fotográficos de um mais fundo e complexo fluxo de eventos e vivências que escapam à comum apreensão e ao seu registo convencional (para não falar da história cultural, onde as múltiplas, distintas e simultâneas linhas de mutação são ainda mais evidentes): Fundação, Descobrimentos e Expansão, Domínio Filipino, Restauração, Império Brasileiro e Independência do Brasil, Guerras entre liberais e absolutistas, Regeneração, Implantação da República, Estado Novo, 25 de Abril e restauração da democracia na III República. Na verdade não se pode dizer que qualquer um destes momentos pertença a uma entidade Portugal que supostamente se manteria idêntica a si mesma ao longo da variação dos seus períodos históricos. Esse suposto Portugal, do qual incriticamente falamos, quando não reflectimos sobre o sentido do que pensamos e dizemos, não é com efeito senão uma ilusão de óptica, um filme, coproduzido pela percepção de todos os que conferem uma unidade substancial à sucessão vertiginosa de acontecimentos conexos mas diferenciados. Com efeito, a razão e a experiência não permitem considerar que o Portugal da Fundação, o Portugal dos Descobrimentos ou o Portugal pós-25 de Abril sejam idênticos, nem mostram qualquer entidade Portugal como condição transcendente ou transcendental desses três períodos, embora também não se possa dizer que difiram absolutamente, ao ponto de não haver nenhuma conexão entre si, o que é manifestamente falso. Somente essa conexão não parece obedecer a uma qualquer intencionalidade ou finalidade imanente ou transcendente intrínseca a uma entidade Portugal - interpretação que indevidamente antropomorfiza a vida das nações, à imagem e semelhança da vida psicológica dos sujeitos humanos - , nem se restringe a estes supostos acontecimentos e momentos da história de um Portugal unitário, complexificando-se antes na medida em que se estende, em cada um deles, a diferentes e inumeráveis acontecimentos e momentos da história de vários outros povos, nações e culturas. Que, na Fundação, são diferentes povos e reinos ibéricos, cristãos e muçulmanos, nos Descobrimentos são múltiplos povos, nações e culturas mundiais e, no pós-25 de Abril, são os povos e nações de língua portuguesa, a comunidade das nações europeias e todos os povos e nações com quem mantemos relações mais próximas.

Na história do processo Portugal avulta aliás, pela dimensão mundial assumida a partir dos Descobrimentos, e como temos destacado, na linha dos principais pensadores e poetas deste devir, um entretecimento armilar com os processos de muitos povos, nações e culturas planetários [1]. Um dos aspectos mais salientes que parece diferenciar e singularizar assim o processo Portugal é uma íntima interpenetração com a história do planeta. Ou seja, diferencia-o e singulariza-o o que simultaneamente mais o indistingue da trama em devir do jogo do mundo.
[1] Cf. Paulo Borges, Uma Visão Armilar do Mundo. A vocação universal de Portugal em Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, Lisboa, Verbo, 2010.

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