A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

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sábado, 2 de janeiro de 2010

Sobre a situação cultural de hoje...

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A Pele e a Terra

Se me perguntam qual é a situação cultural em Portugal neste momento, respondo com outra pergunta: a que é que chamamos cultura, hoje?
Porque essa palavra, esse conceito, não tem o mesmo significado para todos – sobretudo hoje, em que se ouve falar de «cultura de responsabilidade», «de civismo», «de transparência», disto e daquilo, como se afinal tudo fosse ou pudesse ser cultura. Como se a cultura fosse um somatório de comportamentos ou de princípios morais e éticos.
O que não é forçosamente errado – é simplesmente diferente da noção de cultura que nos foi incutida desde o século XIX: a cultura era sobretudo o campo das artes, das letras e das ciências; culto era o sujeito capaz de se deixar encantar com um certa ária de ópera, uma cantata de Bach, um soneto de Camões, uma página de Cervantes, Balzac ou Eça, uma escultura grega, um quadro de Rembrandt, etc. – e de os saber reconhecer e identificar.
A cultura é uma invenção europeia, como quase tudo, e também ela teve de sofrer as vicissitudes da História deste nosso continente. Convém lembrar aos mais esquecidos que em Outubro de 1914, com a I Guerra Mundial já a mostrar a sua inédita capacidade de destruição, um jornal de Berlim publica um célebre manifesto no qual noventa e três sábios de renome mundial, entre eles diversos prémios Nobel, defendiam a causa alemã como sendo a que representava a «Kultur», em contraste com as tendências corruptoras da «Zivilisation» moderna, mecânica e sem alma, representada nesse conflito pelas forças aliadas contra a tal Alemanha culta.
É igualmente oportuno lembrar o que escreveu George Steiner num livrinho precioso intitulado «No Castelo do Barba Azul – Algumas Notas para a Redefinição de Cultura»:
«Poucas tentativas se fizeram no sentido de ligar o fenómeno de primeira grandeza da barbárie do século XX a uma teoria mais geral da cultura. Foram raros os que puseram ou sondaram a questão das íntimas relações existentes entre as formas do inumano e a matriz ambiente contemporânea da civilização avançada. Mas o certo é que a barbárie que sofremos reflecte, em numerosos pontos precisos, a cultura de onde brotou e quis profanar. A arte, as investigações intelectuais, o desenvolvimento das ciências da natureza, múltiplos sectores de actividade universitária floresceram numa estreita proximidade espacial e temporal relativamente aos campos de extermínio. (...) Porque é que as tradições humanistas e os modelos de comportamento correspondentes se revelaram defesas tão frágeis contra a bestialidade política? De facto, seriam uma defesa, ou será mais realista identificarmos na cultura humanista apelos expressos ao autoritarismo e à barbárie? Não vejo como um debate sobre a definição de cultura e sobre a viabilidade da ideia de valores morais possa evitar estas questões. Uma teoria da cultura, uma análise da nossa situação de hoje, que não logre considerar no seu eixo as modalidades do terror que levou à morte, por meio da guerra, da fome e do massacre deliberado, cerca de setenta milhões de seres humanos na Europa e na Rússia, entre o início da Primeira Guerra Mundial e o fim da Segunda, não pode deixar de me parecer irresponsável.»
«Compreendemos hoje que as manifestações extremas da histeria colectiva e da selvajaria de massa podem coexistir com uma conservação e até um desenvolvimento simultâneos das instituições, organismos burocráticos e códigos profissionais da alta cultura. Por outras palavras, as bibliotecas, museus, teatros, universidades, centros de investigação, nos quais e através dos quais a transmissão das humanidades e das ciências tem fundamentalmente lugar, podem prosperar na vizinhança dos campos de concentração.»
E o mesmo Steiner a lembrar-nos que os torcionários e manipuladores das câmaras de gás eram muitas vezes conhecedores ávidos ou mesmo executantes das composições de Bach e Mozart, ou admiradores e estudiosos de Goethe e Rilke.
A essas observações, escritas em 1971 mas que continuam actualíssimas, podemos nós acrescentar que nesses mesmos anos 40, mas do outro lado da barricada, se inventou o «bombardeamento cultural» («cultural bombing») -- os bombardeiros aliados arrasaram sistematicamente alvos culturais alemães, como a Biblioteca Nacional de Munique (500 mil livros destruídos) ou a biblioteca universitária de Hamburgo (625 mil livros) – no total, cerca de oito milhões de livros consumidos pelo fogo. Apenas alguns exemplos desse catastrófico cenário de destruição, a que a cultura não escapou.
E tudo isso faz parte da nossa herança, por mais que nos doa. Ou por mais que tudo façamos para o ocultar na «cultura de amnésia» hoje vigente -- porque a memória só é exigida aos nossos computadores... Os mesmos computadores em que brincamos com jogos de guerra, aliás. Isto porque, já agora, também vigora hoje uma «cultura de virtualidade» em que nada é real (até nos tocar na pele) e tudo é «faz de conta».
A grande vencedora dos dois maiores conflitos mundiais foi a cultura americana. E um dos dados dessa mesma cultura é o espectáculo, sob as formas do cinema e da televisão, obviamente, mas também das outras artes e sobretudo dos nossos comportamentos: não preciso de ser realmente isto ou aquilo, basta que pareça (e apareça) assim aos olhos dos outros, numa cultura em que tudo se mostra e deve ser mostrado («público» e «privado» confundem-se). Se eu não aparecer na televisão, nos jornais, nas revistas, na Internet, é como se não existisse: estou social e culturalmente morto. Apareço (e pareço), logo existo...
Outra vencedora, e de matriz americana, do violento século XX foi a informação, tantas vezes confundida com a cultura. E confundindo mesmo os espíritos mais perspicazes, como o mediático Umberto Eco: «Cultura não é saber quando morreu Napoleão. Cultura significa saber como vou descobrir isso em dois minutos» ... Mas, digo eu, esse saber não é sabedoria nem é cultura, continua a ser informação. Uma informação omnipresente na nossa sociedade maioritariamente urbana, através da televisão, da rádio, dos jornais (cada vez menos), da Internet, da publicidade – palavras e imagens competindo entre si para nos darem conta do que se passa à nossa volta. Mas dentro de nós, quem nos diz como somos e estamos?
Todos nós conhecemos pessoas famosas por serem «cultas», exemplares nos diversos ramos da cultura erudita, mas que, quando nos aproximamos delas, se revelam seres humanos pouco edificantes, às vezes execráveis, ou simplesmente tão desinteressantes que nos levam a perguntar: mas como é que uma pessoa assim conseguiu criar uma obra tão bela...? Pessoalmente, tendo passado por demasiadas experiências penosas desse tipo, considero que estamos perante um dos enormes mistérios da criação...
É como se a tal cultura fosse apenas uma pele, ou uma capa, um acessório alugado num guarda-roupa cultural, e destinado a figurar neste baile de máscaras global.
«Global» -- aí está outra palavra que faz parte do nosso vocabulário cultural contemporâneo. E com toda a razão: a cultura que temos hoje é sobretudo global, ou seja, de matriz americana. Tal como outrora todos os caminhos (aliás, estradas romanas) iam dar a Roma, também hoje os nossos modelos vêm da América – mesmo o «multiculturalismo» veio de lá ...
Nesse aspecto a informação disponível é muito útil para fazermos estas comparações e sabermos a quantas andamos e o que nos querem impingir sob a capa da «originalidade». E que alimenta a chamada «indústria cultural», expressão horripilante que também nos chegou dos EUA, evidentemente (ainda está por fazer o rol dos malefícios da industrialização ...)
Um dos modelos culturais que hoje impera é o do horror disfarçado com o rótulo de «arte» e vendido por bom preço, graças ao nome que aparece na assinatura (os nomes, hoje, não têm significado espiritual – têm valor de mercado!) Sempre que me acontece entrar numa galeria ou até mesmo em casa de alguém e deparar-me com essas monstruosidades, além da dor que isso me provoca, dou por mim a perguntar: como é que se pode ter uma coisas destas diante dos olhos e não gritar, não adoecer, não ficar furioso com a humanidade...?
Talvez o Steiner tenha razão quando comenta: «Se fitarmos o medonho com demasiada insistência, acabamos por nos sentir insolitamente atraídos pelo medonho. Por vias estranhas, o horror mobiliza-nos a atenção, e concede às nossas capacidades limitadas uma ressonância de artifício.»
Tudo isso se aplica naturalmente ao caso cultural do nosso País, acerca do qual se deve ainda perguntar se a cultura que temos é mesmo nossa, se contém algo que seja especificamente português, ou se é apenas «global», como agora é moda e imperativo.
Nestes cem anos da «Águia», vem a propósito referir o que um dos seus vultos maiores, Teixeira de Pascoaes, escrevia em «Arte de Ser Português»:
«Ser português é também uma arte, e uma arte de grande alcance nacional, e, por isso, bem digna de cultura. (...) O fim desta Arte é a renascença de Portugal, tentada pela reintegração dos portugueses no carácter que por tradição e herança lhes pertence, para que eles ganhem uma nova actividade moral e social, subordinada a um novo objectivo comum superior. Em duas palavras: colocar a nossa Pátria ressurgida em frente do nosso Destino.»
Pascoaes escreveu esta cartilha cívica para ser ensinada nas escolas fundadas pela República. Agora que se assinalam cem anos da implantação dessa mesma República, o que faremos com este testamento espiritual do poeta, até agora nunca posto em prática?
Um outro poeta da mesma geração, Pessoa, afirmou que a cultura é um fenómeno espiritual e que a pátria era a nossa língua. Face a esses dados que fazem parte do nosso legado, que pátria é a nossa, quando a língua que hoje temos está reduzida a um léxico mínimo e a uma invasão de palavras e expressões americanas, usadas no original ou traduzidas à letra? Exemplos: timing, opinion makers, media (lido como «mídia»), outdoors, glamour, target, staff, procedimentos, corporações, janela de oportunidade, ícone, agendas, basicamente, interacção, pró-activo, no fim do dia, postura – e assim por diante...
O Pascoaes (sempre ele!), na mesma obra de 1915, definiu as características da alma portuguesa como sendo: termos uma língua e instituições próprias, uma História e antepassados exemplares, paisagem, gastronomia, igualmente próprias, e uma relação particular com o mar. Ora a língua está gravemente ferida, as instituições foram copiadas dos outros, a História é desprezada ou mal ensinada, os antepassados são meros desconhecidos, os monumentos estão a cair, a gastronomia ainda resiste apesar de ameaçada pela «nova cozinha» vinda do estrangeiro, a relação com o mar só subsiste nos pescadores que nos restam. Esse mar que foi o nosso deserto de nómadas e através do qual chegámos aos Orientes ... E hoje? Onde vamos? Fazemos turismo (os que podem) ou emigramos (à força, outra vez). Nem sequer conhecemos este País nem o seu património, nem a sua História. Geralmente são estrangeiros aqueles que nos mostram as riquezas que temos – e depois nós ficamos muito admirados...
Creio que a cultura não pode ser desligada da agricultura, no sentido em que qualquer cultura nasce da relação com uma certa terra e aqueles que a habitaram antes e habitam agora, e que a lavram misturando o seu suor com o húmus. Cultiva-se o espírito como se cultiva a terra. A cultura de um povo constitui a identidade de um certo grupo humano situado num determinado território ao longo de um certo período.
Creio, igualmente, que a chamada cultura, sempre ligada com a curiosidade e com o gosto de aprender, é o que nos permite ligar todas as coisas entre elas até formarem um tecido – como quem faz tapeçaria. É um entrelaçado ou um acto de amor.
Creio, finalmente, que a Bíblia está certa quando apela ao homem justo, e não ao homem culto; ao estudo, e não à enciclopédia; ao coração amoroso, e não à biblioteca recheada. Porque a sabedoria vem do coração, é coisa íntima, e a cultura, como sabemos, é demasiadas vezes uma simples pele, fina e frágil.
Afinal de contas, de que me serve ser «culto» se não cultivar esta terra que eu sou? Cultivá-la de modo a que dê frutos que alimentem os outros, os que têm fome.
De que me serve a cultura se ela não fizer de mim um ser humano melhor?
Mas claro que ingénuos como eu nunca terão cotação no tal mercado global.

António Carlos Carvalho