Dizem-nos algumas fontes doxográficas que os pitagóricos não comiam favas. Não é por isso que lhes damos importância, mas esse pormenor ficou-nos na memória cultural colectiva e fica na individual, decerto pelo seu exotismo, uma vez que nenhuma maleita vem de as ingerirmos, serem agradáveis ao paladar e um bom alimento do qual ainda nos continuamos a nutrir. Sabemos também que os gregos desprezavam os cães. O que também assinalamos nos meandros da memória pelo seu insólito.
Se as fontes doxográficas nos indicassem que os pitagóricos não comiam cães, acharíamos o preceito hílare e incredível, uma pequena amostra de non sense deixada pela ironia antiga ou um simples erro de copista. Porém, se os cães fizessem parte das iguarias dos gregos, encontraríamos na máxima “Não comam cães” uma inequívoca demonstração de profundidade ética, compaixão e heroicidade pitagóricas. Contudo, a verdade é prosaica: os gregos desprezavam os cães e os pitagóricos não comiam favas, não sabemos porquê.
O facto de não as comerem, leva-nos a querer adivinhar-lhes meandros de confraria religiosa, com a aceitação de um regime dietético exigente. Que para ser pitagórico não bastaria uma sabedoria, e seriam cumpridas obrigações (iniciáticas? apenas morais?) e provações, quem sabe, para que um simples grego se pudesse tornar num pitagórico. Podemos imaginá-los, através da transformação dos hábitos comuns dos demais, a chegar a um qualquer estádio espiritual que lhes permitiria ouvir a “música das esferas”.
Por outro lado, o desprezo dos gregos pelos cães é-nos ainda mais incompreensível, no entanto é esse desprezo que nos permite entender que Diógenes e outros pudessem ter sido desonrados por toda a eternidade.
As favas, os cães. O passado da civilização humana é um labirinto sem ecos vivos e, por cima de cada estrato dela, se vão erguendo as pequenas civilizações com o seu legado perecível, insondável e fabuloso.
Em cada patamar presente, não deixamos de olhar para as civilizações pretéritas com alguma dose de desprezo, não menos incompreensível, em tudo semelhante ao dos gregos pelos cães, mas se purificarmos o olhar e nos lembrarmos que seremos os fósseis de amanhã, concordaremos sem esforço que tanto os que não comiam favas, os que desprezavam os cães, e os que viviam como eles, fundaram o fulgor eterno da civilização helénica. Talvez tenham sido todos homens tolerantes.
O facto de não as comerem, leva-nos a querer adivinhar-lhes meandros de confraria religiosa, com a aceitação de um regime dietético exigente. Que para ser pitagórico não bastaria uma sabedoria, e seriam cumpridas obrigações (iniciáticas? apenas morais?) e provações, quem sabe, para que um simples grego se pudesse tornar num pitagórico. Podemos imaginá-los, através da transformação dos hábitos comuns dos demais, a chegar a um qualquer estádio espiritual que lhes permitiria ouvir a “música das esferas”.
Por outro lado, o desprezo dos gregos pelos cães é-nos ainda mais incompreensível, no entanto é esse desprezo que nos permite entender que Diógenes e outros pudessem ter sido desonrados por toda a eternidade.
As favas, os cães. O passado da civilização humana é um labirinto sem ecos vivos e, por cima de cada estrato dela, se vão erguendo as pequenas civilizações com o seu legado perecível, insondável e fabuloso.
Em cada patamar presente, não deixamos de olhar para as civilizações pretéritas com alguma dose de desprezo, não menos incompreensível, em tudo semelhante ao dos gregos pelos cães, mas se purificarmos o olhar e nos lembrarmos que seremos os fósseis de amanhã, concordaremos sem esforço que tanto os que não comiam favas, os que desprezavam os cães, e os que viviam como eles, fundaram o fulgor eterno da civilização helénica. Talvez tenham sido todos homens tolerantes.
2 comentários:
Ainda há, muito felizmente, quem por aqui escreva de seu próprio pensar, em bom português de ler e de querer guardar.
E não de um mero e semi-desatento diagonar de notícias nadas-velhas de jornal de lusofonadas, para logo as deitar fora, para esse inglório esquecimento a que estão fadadas as coisas sem história e de desimportar saber-se.
Há, parece, quem haja hoje "alguma dose de desprezo, (...) incompreensível, em tudo semelhante ao dos gregos pelos cães", não já para com todo o pretérito, mas para com o hodierno, como se algo fosse absolutamente desprezível, de quanto é humano.
Desprezível é, sim, quem descai em semelhante olhar e não tenha a previsão de convir em que, ao menos por isso, será fóssil amanhã, sendo hoje já pouco menos, e não mais.
Fóssil sempre perdura, enterrado, à usura do tempo: a pequenez ensandecida, nem isso.
Grato pelas favas e pelos cães.
E pelo relembrar tolerância a quem já não lhe recorde a nobre serventia.
Sou, pelos vistos, meio grego. Desprezo "caniches". Em compensação, adoro favas (favas sem aspas).
Enviar um comentário