Uma nota cordial aos defensores dos direitos dos animais.
202 Campos Elíseos. Talvez alguém ainda se lembre: a morada parisiense do Jacinto de "A cidade e as serras", e deixo a cada um a interpretação do simbolismo deste endereço: pois os Campos Elíseos não são mais do que a terra paradisíaca e perfeita dos antigos gregos, um pouco como a em tempos tão falada neste blog Ilha dos Amores camoniana; e o número 202, na sua simetria e dualidade, poderia ser o pretexto para (mais) uma reflexão sobre a força e a ilusória completude da dualidade e da polarização. Número curiosíssimo, o 202 (ah, e o subtil Eça adivinhou-o na alvorada do terrível século 20), número curiosíssimo sim: 2-0-2, ou a dualidade como asa e amparo de um Nada central.
Mas aqui, como disse Camões e aprendi eu à minha custa já, matéria perigosa neste blog...
Uma vénia à direcção da Águia, que me permite escrever aqui. Mas não é ao Eça nem ao fascinante simbolismo dos números que venho chamar a atenção daqueles a quem dedico este post.
202 - e por isso a minha nota - é também o número de um importantíssimo artigo do Código Civil ao qual um texto aqui publicado há dias pelo Paulo Borges se referia (o link AQUI ); e nele está, pelos vistos, um dos alvos a abater e um dos bastiões do inimigo.
Vejamos as coisas mais de perto. No artigo 202 não se fala de animais, e não é necessário alterar-lhe um iota para que um chimpanzé deixe de poder ser dissecado em experiências 'médicas', um golfinho deixe de poder ser abatido impunemente ou um elefante de circo deixe de poder ter a vergonhosa condição de elefante de circo. E também não é por causa do que lá está hoje escrito que essas coisas acontecem todos os dias, e que todos os dias a maior parte de nós se ri alarvemente delas. Se os ministérios o andam a analisar à lupa, andam a perder o seu e o nosso tempo.
O artigo 202 não contém mais do que uma afirmação importada da filosofia. Diz isto (no seu número 1): "Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas". À boa maneira do que tem sido a filosofia europeia dos moderninhos (outra vénia ao Descartes, ao Kant e à Revolução Francesa), uma frase que tem que ser traduzida para os não-iniciados.
E diz também (no seu número 2): "Consideram-se, porém, fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como (...) as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual.".
Mais nada diz, nem precisa; de chimpanzés, elefantes ou borboletas, nem rasto. Então?
Com esta regra, como é que as coisas são ensinadas a um estudante de direito (futuro juíz, futuro advogado ou - ai de nós - futuro político)?
É dito ao estudante, como se fosse coisa assente, que no mundo em que vivemos - ensinaram-nos os filósofos - há sujeitos e há objectos. Os sujeitos relacionam-se uns com os outros, e relacionam-se uns com os outros a propósito de objectos. Quando essas relações interessam ao direito (por exemplo, a relação de amizade não interessa ao direito), a relação é, como o nome indica, jurídica. E portanto está aqui uma grelha de interpretação do mundo: sujeitos, objectos, relações. Através dessa grelha a Lei falará, e dará o seu a seu dono.
Diz-se depois outra coisa, e aqui começam as subtis armadilhas: os sujeitos são pessoas, e os objectos são coisas. E - dualidade - não há terceira via.
Talvez alguém reconheça esta linguagem filosófica na discussão sobre o estatuto jurídico do feto e do embrião humanos... se o estudante aplicar esta grelha de leitura a um escravo, concluirá que ele, porque pode ser vendido - e a venda é o protótipo da relação jurídica moderna, isso qualquer estudante de direito já percebeu - é o objecto da relação entre Pedro, comprador, e Paulo, vendedor. E assim Pedro e Paulo são evidentemente pessoas (e sujeitos) e o escravo obviamente uma coisa (e um objecto).
Como sabem, a escravatura é proibida por lei. Eu e os meus leitores não corremos, teoricamente ao menos, o risco de ser comprados por Pedro, vendidos por Paulo. Mas não é o artigo 202 do Código Civil que nos protege, e não é preciso mudá-lo para nos protegermos mais. Este artigo não diz que coisas há, mas o que são elas.
"coisa é tudo aquilo que pode ser objecto de relações". Deixo aos filósofos, que abundam por aqui, a questão: é ou foi na verdade isto dito pelos vossos ilustres confrades da filosofia europeia? Se foi, foram acertados ao dizê-la, sábios ao dizê-la? Não sou filósofo, e não saberia responder. Mas sou jurista, e portanto sou rigorosamente prático - qualidade mais rara que dentes numa avestruz. E quanto ao artigo 202 do Código Civil e à rede de conceitos que ele pressupõe, digo que, como grelha de leitura, isto basta-nos e serve-nos: isto, ou seja, um mundo em que nada mais há do que sujeitos, objectos e relações. Ajuda-nos muito a simplificar a análise de uma compra e venda, de um arrendamento, de um casamento, da adopção de uma criança. É uma grelha de leitura formal, não uma hierarquização material das coisas. E não nos diz, precisamente por ser formal e não material, se uma criança norueguesa e loira ou um gato surrado e vadio são sujeitos, coisas ou relações, se podem ser vendidos ou adoptados, se podem passear no jardim de Paulo ou ser esquartejados por Pedro. Mas, reparem: ajuda-nos a simplificar. Como tudo o que é próprio do discurso moderno, que é o discurso do capitalismo.
Apoiada nestes conceitos formais, a lei também diz - noutros locais - que coisas há, que pessoas há. E aqui é que estamos no centro dos problemas. A lei moderna, claro, apenas aceita como pessoas os seres humanos vivos, e entidades de criação humana como a Associação Agostinho da Silva (a que nós juristas chamamos 'entidades colectivas'). Não aceita que um gato o seja, não aceita que o meu cadáver o seja, não aceita que a mais bonita das pedras do mundo o seja. Eu tenho direitos e exerço-os, a Associação Agostinho da Silva tem direitos e exerce-os. O gato, o meu cadáver e a pedra... ah.
Mas o gato pode ser vendido e a pedra pode ser moída. Já o meu cadáver, que não será uma pessoa, não poderá ser vendido nem esquartejado por Pedro ou Paulo. Estará mais defendido pela lei do que um gato vivo. Se perguntarmos, numa escola de direito, porque é que um cadáver é protegido, responder-nos-ão com uma conversa atrapalhada sobre dignidade, ética, respeito, filosofia, religião e consenso social. E dirão apressadamente não passa pela cabeça de ninguém que as coisas pudessem ser de outro modo. Que estranha propriedade tem essa coisa que é o cadáver?
A palavra propriedade é uma palavra muito estranha. Quer dizer o que é próprio, e quer dizer o que é possuído. E possuir é próprio do capitalismo moderno, ao contrário do 202 não há aqui coincidência nenhuma. Deixámos de ver o que é próprio e apropriado às coisas para melhor nos podermos apropriar delas - e através delas dos outros, porque no mundo tantas coisas são relações. O cadáver é das poucas coisas em que continuamos a ver a diferença. Não é apropriado que um cadáver humano seja apropriado. Mas isso não faz dele pessoa, nem sujeito. Faz dele apenas uma coisa que pode dormir tranquila, ao contrário de tantos animais vivos.
202 Campos Elíseos, 202 Código Civil. São estranhas as dualidades, e a mais astuta de todas é a que tem o Nada no centro. Não gosto da modernidadezinha e sou fiel à tradição: sei de experiência feita que o mundo é múltiplo, floração do ser e labirinto que o espírito vence. Não sei o que dirão os ministérios, os peritos, os técnicos, sem dúvida legião; não sei em que transformarão o artigo simples do Código que aqui comentei. Tenho vergonha de ver um elefante escravizado a um circo. E aos defensores e amigos dos animais queria dizer que parem um pouco a considerar esta coincidência e esta simbologia de que aqui falei. 202 Campos Elíseos, e a casa do Jacinto em Paris não pôde ser mais do que o inferno de um paraíso invertido. Há muitas ilhas no mar. Tenham cuidado com o que disserem nesta discussão com a lei, porque o que disserem pode ser valioso, e pode ser pena desperdiçar argumentos e falhar o alvo. Não aceitem como se fosse coisa evidente que o mundo está ao contrário e que portanto basta inverter tudo. Tenham cuidado com a dualidade que se esconde no Tudo e no seu Nada, porque é a mais difícil de discernir. No mundo há pessoas e coisas, não creio que a dissolução disso seja solução. Uma coisa pode ser tranquila, o artigo 202 está muito bem. Basta que as coisas sejam tratadas com a dignidade que lhes é própria, para que não seja apropriado apropriá-las a todas de igual forma. Mas isso só será possível num mundo em que os únicos números não sejam o Nada e o seu Dois. Em que nem todos os campos tenham que ser Elíseos sob pena de serem o inferno.
10 comentários:
Li, me demorei a ler, e entendi. Há pelo menos um português inteligente em Portugal.
O Casimiro é o nosso relógio. Começou a rentrée...
Um Post profundo que merecerá uma resposta dedicada num novo artigo...
brevemente!
Caro Edson, creio que todos o somos, mais ou menos. Hei-de contar uma história sobre isso um destes dias, não cabe num comentário :)
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Renato, essa teve muita graça - candidato-me a ser o cuco da águia?
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Clavis, vamos a isso :)
Para o "cuco da Águia": disse-me hoje o Miguel Real que o teu poema "Que tem Goa que magoa" foi lido (e traduzido) pelo Paulo Varela Gomes na sua sessão de despedida em Goa. E esta hein?
Se pretende dizer que os animais são na verdade coisas, não vejo aqui senão uma justificação esotérica do MAL. Exercício perverso da inteligência, que antes não existisse.
MAL: MOVIMENTO ALTERNATIVO LINGUAREIRO.
Caramba, depois do "Que tem Goa que magoa" em goês, este “202 Campos Elíseos”.
Este Casimiro só não se revela, porque já o conhecemos, mas vai longe.
Obrigado por esta inteligente lição de “esgrima”.
Forte abraço.
b.r.i.l.h.a.n.t.e!!!!!
És mesmo bom, ó Casimiro! Diz lá qual é o número da tua porta... Deve conter uma mensagem profunda sobre os sujeitos, as coisas e as relações.
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