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SAUDADE DA FILOSOFIA: A SAUDADE DÁ FILOSOFIA.
Willis Santiago Guerra Filho
Em homenagem a Pinharanda Gomes, no transcurso de seus setenta anos.
Certa vez, uma dessas enquetes que não se sabe bem como são feitas, anunciou algo de que intuitivamente desconfiamos: a palavra (galego-)portuguesa “saudade” é uma das cinco palavras mais intraduzíveis, dentre todas de todos os idiomas (!). Ora, isso nos dá o que pensar, tanto que se pode até chegar a fazer uma “filosofia da saudade”, como muitos autores, expressando-se nessa língua, de fato tentaram, quando a filosofia era algo mais almejado, desejado. E mais do que uma filosofia da saudade, houve quem falasse em “metafísica da saudade” e, até, “teologia da saudade”, à qual corresponderiam, como religião, o saudosismo sebastianista, messiânico. É o que podemos depreender da leitura da antologia feita por Dalila L. Pereira da Costa e Pinharanda Gomes, intitulada “Introdução à Saudade”. Mas para saber o que seria isso, uma vez que, saudade, os que nascemos na língua portuguesa, sabemos o que é, precisaríamos saber mais sobre o que é isso de filosofia, metafísica e teologia. Vamos lá, então. A filosofia, como indica a própria etimologia da palavra, surge, na antiga Grécia, como uma tal desejar (philein), um anelo, uma intenção (philia), que era uma nostalgia – mas não uma saudade - da sabedoria “sobrehumana”, divina (sophia), de que dispunham – ou dispuseram - os sábios (sophian), para nós perdida, e perdida já naquela época em que surgiu, pelo aparecimento das doutrinas, as mais diversas e em conflito, dos que estudavam a physis, a natureza (de todas as coisas), os “físicos” ou “fisiólogos” (de physis + logoi = “discursos sobre a natureza”). Uma das acusações contra Sócrates, no processo que os atenienses moveram contra ele – e, também, contra a filosofia, que com ele propriamente se iniciava -, foi a de ele praticar a física, sendo esta acusação a que ele repudiou com mais veemência. Já aquela, de que apregoava a substituição dos deuses oficiais, por se referir sempre ao seu daimon pessoal, foi descartada com a costumeira (e sábia) ironia, lembrando a contradição que havia entre essa acusação e uma terceira, a de que corrompia a juventuda ateniense ensinando-lhe o ateísmo...Para Platão, seu discípulo mais famoso, a filosofia seria "epistéme epistemés", "ciência da ciência", enquanto o mais célebre discípulo deste, Aristóteles, na "Metafísica" (Livro VII ou zetha, 1), a define como "epistéme ton próton arkhôn kaì aítion theoretiké", conhecimento dos primeiros princípios e causas explicativos de tudo. Comentando essa passagem, Heidegger, no texto "Que é isto, a filosofia?", recorda que epistéme deriva de epistámenos, que seria aquela pessoa vocacionada e competente para uma determinada atividade - no caso da filosofia, a atividade de teorizar, sendo a theoria o que os gregos considerariam propriamente a ciência, saber contemplativo das verdades universais, eternas e transcendentes, para além do saber mundano, habitual, a doxa, e que, no princípio do livro apenas citado de Aristóteles, é considerado um conhecimento através do qual os homens se ombreariam com os deuses, devendo, por isso, temer a inveja deles. Uma outra forma de conhecimento, mais próprio das contingências da vida, é aquele que os gregos denominavam techné, a técnica, um conhecimento operativo, instrumental e produtivo, limitado e finito, por voltado ao atendimento de finalidades específicas, mas sempre revelador de potencialidades, donde sua tradução para o latim como ars.
Então, a epistéme seria algo intermediário entre essas duas formas de conhecimento, por referir-se à atividade de conhecer a partir das necessidades de um certo tipo de explicação, isto é, não as explicações que se fazem necessárias e úteis à manutenção da vida, inclusive no convívio social e político, mas sim aquelas que, a rigor, são desnecessárias, inúteis, embora sejam elas o que desejamos, anelamos, quando nos maravilhamos, sentindo o assombro, o espanto, o thaumatzein, quando, no duplo sentido dessas palavras, negativo e positivo, nos espantamos e assombramos diante do universo ao nosso redor e em nós mesmos, o cosmos, sendo desse sentimento (pathos) que nasceria a filosofia, segundo os dois filósofos gregos citados - de certa forma os primeiros, por ter chegado até nós o registro de seu pensamento, e até hoje maiores entre todos: Platão, no seu diálogo "Teeteto" (155 d), e Aristóteles, na já citada "Metafísica” (Livro I ou alfa, 2).
Eis que se agora retornamos ao nosso princípio, percebemos que se falarmos em uma filosofia da saudade, isso seria mais para explicar a saudade aos que a sentem sem saber, por não ter uma palavra para sintetizar esse sentimento, tão grande e tão plural, a que chamamos, simplesmente, saudade. E podemos aventar a hipótese de que é um sentimento desses o que acomete a quem passar pela experiência do thaumatzein, a qual nos lança para a filosofia.
Saudade não é o desiderium, que um clássico latino definiu como libido videndi eius qui non adsist, ou seja, a vontade de ver aqueles que não estão presentes, já porque saudade sentimos muita saudade de coisas e lugares, sentimos muito saudade da terra natal, mais do que dela gostamos quando nela estamos, o que demonstra haver na saudade algo de desejo de um futuro melhor realizado do que foi o passado próximo. Saudade não é a nostalgia, que tem a língua castelhana, porque a nostalgía é a tristeza pelo que passou e não volta mais, mas isso também tem na saudade, só que ela é mais: é também uma alegria suave, por saber que o futuro poderá trazer o retorno do que se foi, ainda que sob outras formas, e nesse sentido se assemelha à Sehnsucht alemã. A saudade não nos mata, como o banzo matava os heróicos africanos, brutalmente forçados à emigração para as Américas; nós, ao contrário, matamos a saudade, ainda que por um breve instante, pois ela logo renasce, para depois ser morta novamente, por os que morrem de saudade, sem ser mortos por ela. A saudade não é a Angst depressiva, parente da agonia, que, nos lançando de cara com o nada, revela o ser a parte de todo ente, como propõe a metafísica existencial heideggeriana, tentando pensar o que ficou de fora de toda metafísica anterior, e com isso pretendendo descartar até a própria metafísica, tragada também no buraco negro do nada. A saudade do ser é serenidade, Gelassenheit: deixa o ser, ser, esperando que venha a nós, ao invés de nos precipitarmos em busca desesperada d'Ele.
Saudade pode corresponder melhor do que a qualquer outra à palavra catalã anyoransa, mas só alguém com boa vivência nas duas línguas pode julgar. Ao mesmo tempo, temos a palavra añoranza, em galego, que é nossa língua irmã (xifópaga), e ela não substitui a também galega saudade, sendo aquela mais do registro espacial, horizontal, do que temporal, vertical, como a Heimweh alemã ou o souvenir, francês - portanto, mais sofrida do que a audade, com a qual mais nos animamos do que padecemos.
A philia grega, que está na filo-sofia, não deixa de se aproximar da saudade, no que ela tem de uma perspectiva de reencontrar no futuro o que já esteve no passado - no caso, a sabedoria, considerada, a rigor, para sempre perdida, para quem, como Sócrates, se dizia filósofo, com sua costumeira ironia, por só saber que nada sabia, e ainda assim saber mais do que quem se dizia sábio, sabedor de muitas coisas, se não,de tudo, como certos sofistas, que para Sócrates não passavam de sabidos, espertos, experts, como se diz hoje em dia, ou seja, no máximo, especialistas, com a arrogância de por isso, por saberem muito de um pouco, saberem também o bastante sobre tudo. É assim que, ao invés de filosofia da saudade, metafísica da saudade, teologia da saudade, a mim parece que nos carece mais a saudade da filosofia, saudade da busca desejante de sabedoria, assumindo que ela nos falta; a saudade da metafísica, da meditação sobre o ser de tudo que é, sobre o que é ser; a saudade da teologia, do estudo, ainda que impossível, mas necessário, do que não nos deixa solitário em nosso ser, singular, inexplicado, ínfimo, precário e, ao mesmo tempo, infinito. Eis que a palavra “saudade” tem parentesco com o nome da flor sucena ou cecém, de assucena, como dizemos no nosso sertão imemorial, a Susana dos hebreus, a flor real dos latinos, assim chamada por ser a mais linda e de odor mais doce dentre todas as outras. Os trovadores medievais diziam ssuydade, vindo de soedade, passando por soidade, de sonoridade mais provençal, referindo-se ao que é de si, mais do que ao que se dá coom quem está só, como na matriz latina solitudo, donde veio por derivação, soletate, a soledad castelhana, que é nossa solidão. Antes de ser saudade, a palavra soou sódade e, em Lisboa, particularmente, soudade, como ainda hoje se pode ouvir das bocas mais ciosas da língua que aprenderam de seus antepassados, aquelas das classes populares de lugares como a eterna Bahia: há mesmo um samba-lamento, clássico, em que Clementina de Jesus canta “soudade, meu bem, soudade”. Em saudade há saúde, saudação e salvação.
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