Este meu post é uma reflexão que vem em continuidade em relação a factos que ocorrem na minha vida, não é uma resposta directa a algumas coisas que têm vindo a ser publicadas, por aqui e por ali, acerca de se ter, ou não inimigos, embora haja aí uma ocasião para esta minha reflexão, coisa que não nego. Só estou a fazer esta introdução, porque hoje queria escrever um post sobre um tema da actualidade que terá que ficar para outra ocasião. Para mim esse tema é muito mais importante do que o conteúdo deste meu post, mas não resisto.
Também não quero aqui alimentar polémicas, embora estejamos muito longe de praticar a mais autêntica polémica, e basta olhar para uma figura como a do António Sérgio, para vermos o que é um “polemizador”. E é claro que ele tinha inimigos.
Mas há aqui ocasião para perguntar: há uma ética da inimizade? Ou seja: poderemos considerar que o sentido mais elevado da lealdade estará na própria relação entre inimigos que como tal se assumam enquanto adversários?
Por exemplo, fará sentido mentir a um adversário? Se a polémica não for uma adversidade, mas uma litigância pela verdade? É óbvio que os menos cínicos (e estou aqui a ressuscitar a acepção mais profunda do termo “cinismo”, o vivermos como os cães, ou seja, na simplicidade, na fidelidade e na autenticidade daquilo que somos – e não resisto a falar aqui do livro “man meets dog” do Konrad Lorenz) irão arguir que a verdade não existe, que vivemos na era do vazio e do relativismo axiológico mais descampado. Talvez. Mas temos uma vida e outros no nosso entorno. Se encararmos a verdade como algo que nós queremos no sentido em que nos traga formas de alcançarmos a coerência e a congruência (no sentido em que Carl Rogers assume este conceito), podemos assumir a verdade nessa acepção como um princípio orientador, tanto no âmbito do conhecer como no do agir.
Perante um autêntico adversário a mentira e a falsidade não resultam (a mentira, no horizonte ético-moral; a falsidade, no horizonte lógico-argumentativo e gnosiológico), porque, pura e simplesmente, através delas estamos a municiar o armamentário de quem connosco se confronta. E há que atender a esta ideia do confronto: a importância de estarmos face-a-face com um outro, com alguém que é irredutível à nossa intencionalidade egótica, no fundo seríamos senhores do mundo se não fosse os outros, sartrianamente falando, aí residirá o nosso inferno. Se o mundo tivesse que ser um senhorio, seria trágico. Embora existam muitos que pensam que só sendo senhores do mundo é que valemos qualquer coisa.
Se cada um se considerar incomparável, aí as coisas começam a fazer outro sentido. Mas não é isso que acontece “normalmente”, é pela comparação que, quase sempre, pretendemos afirmar-nos. E aí a inveja é uma tortura: ardemos na inaceitabilidade da beleza do outro, do seu poder, do seu prestígio, da sua soberania sobre si. Inver, ou invejar, é não ver, é estarmos cegos para aquilo que os outros são e para aquilo que nós somos, em verdade.
Se a vida tivesse que ser uma competição, então a inveja seria biologicamente incontornável. Darwin penhoraria as barbas pela afirmação desta tese, para a sua transformação em lei científica aplicada à vida humana. A luta pela vida pode trazer evolução no sentido em que o pescoço fica maior ou menor, ou os olhos como maior ou menor alcance, como no caso das girafas ou dos falcões, por causa da adaptação ao meio. Isto poderá aplicar-se também à bestialidade humana, basta olhar em torno para vermos que a antropologia se pode transformar bestiário, isso se o nosso olhar não tiver um sentido mais profundo, uma intencionalidade mais percuciente. É possível visar mais longe e de forma mais elevada.
“O homem que não atingiu a vida do espírito ignora o que se pode saber, e julga ou pretende saber o que não é possível saber. Ocupando-se de Deus, dos números, dos astros, dos viventes ou dos homens, sentimo-lo sempre e tanto mais instável quanto mais seguro se manifesta. Sem fundo estável, nem critério seguro, acumula incessantemente contradições insolúveis das quais morrerá o seu pensamento de inconstante vulto e baça glória.” (José Marinho, Aforismos sobre o que mais importa,XXIV).
O meu avô materno, homem de poucas letras (aprendeu a ler e a escrever sozinho), dizia que um homem de bem precisa de inimigos, que quem não tiver inimigos não será de confiança. De facto as personagens consensuais não chegam a elevar-se à condição de terem um rosto, vivem a vida como uma série de estratagemas, são seres de máscara e superficialidade. Nos momentos de perigo, ou de “aperto”, pura e simplesmente não estarão “lá”.
Mas há uma diferença entre ter inimigos e viver a, na, inimizade. Ser odiado é diferente de cultivar o ódio. Podemos ter inimigos sem sermos inimigos. Não há aí contradição. A amizade, pelo contrário, só existe na reciprocidade. Mas mesmo aí podemos viver a soltura: alguém que eu considere como amigo, ou amiga, tem a liberdade de se comportar comigo como quiser. Não será isso que aumentará ou diminuirá a minha consideração por si, embora eu possa admitir, se for essa a sua vontade, que a reciprocidade já não existe, e isso terei que respeitar.
Se não acharmos que a vida é uma troca, a agudeza de algumas conceptualizações tende a suavizar-se.
É fácil viver para os amigos, dirigir para os amigos, governar para os amigos. É fácil querer tudo de bom para os “nossos”. Mas isto é visar os outros sob a categoria da propriedade, o mesmo que dizer que queremos viver e conviver na servidão.
A minha última aula de psicologia deste ano lectivo terminou duma forma muito conturbada. Escolhi um texto sobre o ego e o egotismo. E dispus-me a comentá-lo com os alunos. A certa altura, clarificando uma passagem que parecia obscura para alguns alunos, eu disse que as pessoas de quem gostamos são só pessoas de quem gostamos, não são mais nem menos do que qualquer outra pessoa, há 6 biliões de pessoas no mundo, desses 6 biliões hoje morrerão cerca de 250000, se uma dessas pessoas for uma das que nós amamos, sofreremos imenso com isso, mas a morte dessa pessoa não é menos “importante” do que a morte das outras 249999.
Disse ainda que dos 6 biliões de pessoas, umas poucas centenas conhecem-nos, algumas dezenas sabem quem nós somos, mas mesmo que fôssemos muito mais famosos isso não alteraria nada de substancial. As pessoas que não souberem quem nós somos, ou até que nós existimos, não serão menos “importantes” por causa disso. E mesmo as pessoas que não gostam de nós, não é por isso que têm que ser consideradas como piores, são só pessoas que não gostam de nós.
Nisto uma aluna ficou alterada, chamou-me hipócrita, disse que era fácil falar, mas praticar é uma coisa muito diferente e apresentou como argumento o seguinte. “E um violador? Um violador merece a mesma consideração do que qualquer outra pessoa?”
Ainda lhe disse que essa pessoa teria sempre que ser respeitada na sua dignidade de pessoa humana, com direito à justiça e à punição, como qualquer outro ser humano. Não é por causa de haver crime que devemos cair na indignidade de nos considerarmos superiores a qualquer pessoa. Isso seria aceitarmos sermos objecto de vitimização. E não nascemos para sermos vítimas.
A aluna continuou a dizer que eu estava a ser hipócrita, que temos o dever de proteger as pessoas de quem gostamos e que gostam de nós e a discussão atingiu um ponto de ruptura. No fundo, foi uma das melhores aulas que me aconteceram.
No dia seguinte iríamos discutir a avaliação final. A aluna compareceu, dirigiu-se a mim olhando-me nos olhos (este pormenor é importante) e pediu-me perdão porque achava que se tinha excedido. Eu disse-lhe que o perdão não se pede, dá-se. Nunca devemos aceitar que um adversário que bravamente nos confrontou nos peça perdão porque aceitou o risco de partilhar connosco a Mestria. No caso dela foi preciso “tomates”, por assim dizer, uma vez que enfrentar um professor na última aula do ano, ainda por cima num ano decisivo como o 12º, é um acto de coragem que eu na idade dela não seria capaz, e foi mesmo um acto de coragem e não de temeridade (diferença que lhe expliquei).
Ela auto-avaliou-se em 18 e defendeu a sua nota. Na pauta encontrou um 19. Talvez tivesse podido ter 20 se tivesse tido um professor à altura de a poder levar mais longe.
4 comentários:
Os teus alunos são privilegiados. Quase tenho pena de não seres meu inimigo, para eu ainda assim dizer isto.
Cristo, quando exortou a amar o "próximo" como a nós mesmos, não definiu os limites dessa proximidade. Quem nos impede de assumir todo o ser como próximo ou até íntimo, amigo ou inimigo, humano ou não humano? Quem nos impede de viver a ausência de limites? Quem, senão o medo, a insegurança, a fraqueza e a ilusão de pensarmos que há algo a perder ou alguém a proteger? Isso é que é a verdadeira perda, a suprema derrota.
Ora, belo texto, Paulo Feitais.
De resto, o exemplo do Cristo é excelente - conhecidos e desconhecidos, no caso do 'próximo'; que, se não definiu, exemplificou na figura de um viajante estrangeiro. E não amava menos aqueles a quem chamou, cara a cara, 'sepulcros caiados de branco'...
Agradeço a oportunidade que me deu de ler a sua reflexão. Textos como o seu dignificam o ser humano. Obrigada.
Só agora vim aqui.
Venho dum concerto do Tito Paris em Oeiras que me deixou noutra dimensão. Partilho convosco a vibração desse evento tão lusófono (com a participação de músicos caboverdianos, moçambicanos e portugueses).
E não há mesmo nada a perder. Nunca perdemos nada que valha a pena.
:)
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