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No primeiro Caderno desta série, BEETHOVEN, reconstitui, Agostinho da Silva, a vida deste génio alemão, contrapondo-o, curiosamente, a Mozart: “Beethoven não tinha a graça cortesã, o gosto das bonitas casacas, as maneiras amáveis que tinham assegurado, juntamente com o talento, o triunfo do pequeno Mozart; não havia nele as harmonias que naturais se exalam, joviais e delicadas; era a força que se concentra e procura o seu caminho, era a batalha que se prepara em segredo, quase em silêncio, a suspensão temerosa que precede o fragor dos ribombos; quem o escutava achava-o estranho, pressentia-lhe a futura grandeza, mas afastava-se sem que um traço infantil o atraísse”[1]
No segundo, LITERATURA RUSSA, uma outra contraposição se equaciona – desta vez, entre os ocidentalistas e os eslavófilos: “dois campos entre os quais, cedo ou tarde, se devia travar uma luta de morte; num partido ficavam os ocidentalistas, depressa tocados pelo socialismo, que pretendiam uma Rússia em que fossem respeitadas as liberdades que se tinham conquistado no Ocidente; no outro, militavam os que defendiam um governo autocrático, convencidos de que a Rússia não podia ser feliz senão com um povo submisso que cumprisse todas as ordens de um governo que era, por definição, sábio e infalível; este segundo grupo era contra toda a liberdade, contra a religião, porque ela apresentava uma certa independência contra o Estado, contra as escolas, que fabricavam intelectuais perigosos para o regime.”[2]
No terceiro, FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA, salienta, Agostinho da Silva, uma vez mais, o “milagre grego”*: “o que importa marcar na cultura helénica não é a proveniência dos elementos a partir dos quais se formou: o «milagre», palavra a que naturalmente se não dá senão o sentido do acontecimento inexplicável, não consiste em se ter inventado o material que se utilizou de início, mas na atitude nova que toma o grego em face dos conhecimentos. É fora de dúvida, e pondo de parte a possível discussão acerca do desejo de conhecer, que a ciência tem a sua origem na necessidade de resolver um certo número de problemas técnicos; mas tem de se acentuar ao mesmo tempo que, enquanto se mantêm nessa atitude pouco avança; os muitos séculos de civilização egípcia ou caldaica deram apenas uns rudimentos de geometria e de aritmética; com o grego tudo mudou: a ciência passa a entrar no caminho que se mostrou fecundo, o do puro jogo intelectual; faz-se ciência como se faz arte ou desporto, pelo sentido de beleza, sendo secundária, não em importância prática, é evidente, mas em relação ao prazer estético do exercício de inteligência, o servir ou não para alguma coisa aquilo que se descobriu ou se criou”[3].
No quarto, ALEXANDRE HERCULANO, não esconde, Agostinho da Silva, a sua admiração por esta figura maior da nossa História, e a sua afinidade relativamente a ele: “Herculano não acredita nem no escol da nação nem na populaça sempre pronta a seguir o político mais hábil em palavras e mais fértil em empregos: mas acredita no povo, na gente tenaz, sóbria, calma, generosa, optimista, cheia de inteligência prática e de bom senso, que formara outrora um país modelar e era capaz, se encontrasse bons chefes, de voltar ao nível de vida dos tempos antigos”[4].
No quinto, A HULHA, impressiona, uma vez mais, a investigação feita por Agostinho da Silva – não só, sobretudo, científica, como desde logo histórica: “O uso do carvão de pedra como combustível é muito antigo, parecendo que são a China e a Inglaterra os dois países em que primeiro teria sido utilizado, tanto para o aquecimento como para a metalurgia; já no século XIII aparecem queixas dos habitantes de Londres que achavam difícil viver na atmosfera da capital, carregada de fumos; no século XVII a exportação do carvão era muito intensa e em troca recebiam os ingleses produtos agrícolas de que necessitavam para viver; é certo, porém, que só nos fins do século seguinte, com a navegação a vapor, que exigia combustível e fornecia força motriz para a extracção e transporte, a produção se elevou em grau apreciável, vindo naturalmente desenvolvê-la ainda mais o progresso da indústria e da química; em 1800 extraíam-se apenas 20 milhões de toneladas; cinquenta anos depois a quantidade passou a 100 milhões e subiu ao fim de mais cinquenta anos a 700 milhões de toneladas”[5].
No sexto, A VIDA E A ARTE DE COURBET, reconstitui, Agostinho da Silva, a vida deste pintor francês – autor do célebre quadro “A Origem do Mundo” –, salientando, na sua obra, que reflecte o espírito do tempo, uma vocação “realista”: “Em face de uma arte que andava perdida pelas nuvens, que se comprazia no histórico ou na pura fantasia, que se desinteressava da sorte dos homens que vivem e morrem numa terra bem real e bem dura, erguia-se a doutrina de que é preciso representar a vida tal como ela é, não se deixando de pôr na tela e no romance tudo o que constitui a existência, sobretudo nos pontos menos belos para o fino esteta, mas que não são por isso os menos importantes para a maioria dos homens; havia aqui, evidentemente, um ponto fraco em metafísica e outro no próprio considerar da vida: ninguém pode representar a existência tal como ela é, mas apenas como a vê, o que significava que se substituía à visão pessoal de que se acusavam os românticos outra visão pessoal que nada garantia mais sólida; por outro lado, é difícil de defender que uma rainha seja menos real do que um britador, de que um baile seja menos vivo do que um enterro: mas se a concepção, como pensamento, era bastante fraca, havia nela uma generosidade, um desejo de progresso, uma revolta contra os cânones estabelecidos, uma garantia de futuro que não podia deixar de trazer à sua defesa todos os espíritos que a ordem social não satisfazia e ao ataque todos os que de algum modo prosperavam à custa do trabalho dos homens que ainda por cima desprezavam; o que se combatia com inteira razão, era a fuga perante a vida quotidiana no que ela contém de tortura, de desespero, de aniquilamento do corpo e do espírito para os que o acaso não lançou às altas esferas sociais; e havia em todo o movimento um anseio de considerar o universo em conjunto, de não separar as actividades humanas, de não pôr para um lado a vida e para outro a arte que era decerto muito mais amplo e mais digno de homens do que o falso aristocratismo de fidalgos degenerados ou de burgueses enriquecidos[6].
[1] Beethoven, Lisboa, Edição do Autor, 1942, p. 6. Cf., igualmente, p. 9: “anunciava-se uma era nova para toda a humanidade, os peitos fremiam de entusiasmo e suportavam-se todas as violências do presente com a certeza de que dentro em breve todo o sonho doloroso estaria dissipado; era uma forte marcha do progresso e do triunfo a que devia ressoar em cada alma, não as brandas-melodias de Mozart”.
[2] Literatura Russa, Lisboa, Edição do Autor, 1942, p. 7. Cf., igualmente, pp. 10-11: “A grande batalha que se travava na Rússia intelectual não era, porém, ou não parecia ser, de carácter metafísico; de um lado, os eslavófilos consideravam a Europa com desprezo e criam ser a Rússia o manancial de virtudes humanas que algum dia salvaria o mundo; eram partidários do tzar autocrático, da repressão policial, da religião ortodoxa, do orgulhoso isolamento perante as novidades dos ocidentais; por sua vez, os ocidentalistas viravam-se para a filosofia alemã, para o socialismo francês, reclamavam reformas completas e atribuíam todas as características da mentalidade russa, não a qualquer superioridade intrínseca, mas a uma real inferioridade intelectual e económica: sem a sua abolição não se podia pensar na Rússia em qualquer vida de verdadeira humanidade.”.
[3] Filosofia Pré-Socrática, Lisboa, Edição do Autor, 1942, pp. 3-4.
[4] Alexandre Herculano, Lisboa, Edição do Autor, 1942, p. 21. Veremos que, em diversas outras passagens da sua obra, Agostinho diz, em nome próprio, quase textualmente o mesmo.
[5] A Hulha, Lisboa, Edição do Autor, 1942, p. 6.
[6] A vida e a arte de Courbet, Lisboa, Edição do Autor, 1942, pp. 18-19.
Ver os "Cadernos" de Agostinho da Silva e outras obras suas em: www.agostinhodasilva.pt
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