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Reflexões sobre o acordo ortográfico (I)
Quando me ponho a pensar no mérito ou demérito destas charlas sobre a Língua Portuguesa, chego pelo menos a duas conclusões distintas, consoante os dias, isto é, conforme o humor (catadura, ourela, como se diz na Ilha: acordou de má ourela!) com que o sol me nasce: umas vezes julgo que estou a prestar um serviço útil à Humanidade (não o faço por menos…), outras, arrenego das patacoadas que me não canso de escrevinhar.
A língua, qualquer que ela seja, e as enfadonhas regras que a regem e tantas vezes a obscurecem, são, no fim e ao cabo, um sistema tão frágil e tão convencional, que se esboroa à primeira brisa de uma atualização ou acordo ortográfico que entre em vigor. E adeus suor e lágrimas com que se aprendeu uma palavra com esta ou aquela ortografia, óptimo, por exemplo (bom, melhor óptimo, como rezava a cantilena, sempre que o mestre-escola perguntava os graus dos adjetivos, agora sem o c), e a súbitas vêm uns senhores gramáticos, linguistas ou filólogos que sobem ao púlpito da academia e antes de atacar, pigarreiam, para aclarar a voz, e sermoneiam para a assistência de fiéis que não somos nós: “Se o p ou o c, se não pronunciam, para quê mantê-los na palavra? Não seria mais curial escrever ótimo, reação, receção, ator, atriz, e outras palavras a que se não empresta voz à consoante muda da traseira? A reação e os respetivos reacionários perderam o c, e hão de perder mais, como o hífen de (hão-de, há-de), e o circunflexo de vêem (veem); a ereção da manhã e a ação de graças; a descontração muscular e a contração do desemprego; a fação partidária a que aderiram e a sua posterior defeção, não defecação… Perdem bastante, mas o pior será perderem a diretriz do acontecimento… No entanto, os alarmismos sobre a gripe suína, perdão, mexicana, melhor, do tipo A, vêm aí a caminho, e os cães que têm sarna ladram por pura reação ao alarido na capoeira (ver, conter, ter e seus derivados, mantêm o circunflexo… Se por acaso a tal consoante traseira é sonora, então, que se escreva e pronuncie: facto, impacto, artefacto, hectómetro… Têm razão. Toda. Dou-lha toda e mais alguma que me sobre! O actual acordo, agora atual, isto é, o de mil novecentos e noventa (estarei equivocado?), já entrou em actividade, isto é, está no ativo no Brasil, tendo sido comummente aceite, o que está correto (a consoante dobrada persiste nas ortografias lusófonas). O nosso país, mais relapso a qualquer mudança, seja ela ortográfica, política, religiosa ou social (aqui fica bem um etc., dá sempre jeito…) – continua um velho respeitável transbordante de sabedura (tornou-se um grande acionista da bolsa de valores imutáveis), mas a lentura do seu passo faz com que Sócrates ganhe corridas ao fim de semana (agora sem hífenes) … Hei de voltar. Com outros hífenes e demais apêndices!
Reflexões sobre o acordo ortográfico (conclusão)
O meu “conflito” inicial com o novo acordo ortográfico devia-se tão-só a uma mera estranheza afetiva. Estava longe de trajar-me de mosqueteiro a terçar armas pelo sim ou pelo não. Ao princípio ver grafado ótimo sem p; ação sem c, veem sem circunflexo no primeiro e; para (sem acento agudo, terceira pessoa de parar e também preposição); pelo sem circunflexo para designar cabelo, pode confundir-se com a preposição); espetáculo e algumas mais palavras do mesmo jaez, como seleção das quinas, arquiteto, teto da casa, atual situação do protecionismo estatal, etc., deixam-nos, no início, um pouco perplexos, e a reação que se tem traduz-se numa quase orfandade consonântica, que passa com um luto bem feito. No entanto, quando a consoante muda se articula, como em faccioso, ficcional, perfeccionista, bactéria, ela mantém-se no seu posto. Sejamos otimistas, o otimismo é salutar, nada está perdido! Outras palavras podem ser baralhantes como o caso de Egito e Egípcio. Basta, porém, recordar a regra de ouro! Assim como adotar e adaptar, optar e opção. Por vezes não temos de adotar padrões europeus, mas, sim, adaptá-los à nossa realidade. Optar por ler um livro de um autor clássico constitui sempre uma boa opção. Os meses do ano e os dias da semana são escritos minúsculas: janeiro, fevereiro, etc. segunda-feira, terça-feira, etc., sábado e domingo…
Lembro-me, como muita outra gente, do grande alarido que fez esganiçar uma parte bem-pensante do País, aquando da construção do Centro Cultural de Belém. Eu também me incluí nas hostes do contra. O respectivo edifício, que lembrava arquitectura árabe (logo, infiel), iria desfear o Mosteiro dos Jerónimos, violentar o ambiente, e mais outras razões que se desejavam ponderáveis, mas que vieram a tornar-se imponderadas. Poucos anos depois, ninguém mais falou contra o CCB. E até se afirma que está bem enquadrado no local onde, mais coisa menos coisa, o Velho do Restelo, pela pena de Luís de Camões, tomou o partido contra os Descobrimentos…
O mesmo quanto ao Acordo Ortográfico a ser posto em prática não se sabe bem quando. Daqui a meia dúzia de anos, ninguém pronunciará uma só sílaba contra o ainda para alguns intelectuais tão malfadado Acordo. Então as crianças de hoje, quando forem adultas, rir-se-ão dos seus antepassados, como eu me ri quando via grafado, em livros antigos, pharmacia, photographo, etc. Não, não vou nem quero vestir-me da voz do Velho do Restelo. A Língua Portuguesa sempre sofreu acordos ortográficos, e não lhe caíram os parentes na lama por causa dessas inovações, embora, em cada desses momentos, houvesse detractores que quase se batiam em duelo com os linguistas e os gramáticos do tempo…
A propósito de duelos, vou transcrever alguns passos de um texto de Eça de Queirós, extraídos dos Echos de Pariz, livro póstumo, publicado em 1924, e transcrito pelo filho segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1911. Vou, depois, transcrevê-lo conforme o de 1945 e também segundo o atual:
[…] Os duellos succedem-se tão regularmente como as madrugadas; e o primeiro espectaculo que o sol, o velho e dourado Phebo, avista ao assomar a rósea varanda do Oriente, é um francez em mangas de camisa e de florete na mão, á beira de um arroio ou nas hervas de um prado, procurando varar com arte as visceras essenciaes de outro francez.
[…] Não póde agora um honesto melro gorgear pacificamente as suas reflexões da alvorada, sem que o venha interromper uma velha caleche a trote d’onde emergem, soturnos e de negro vestidos, sujeitos com um mólho de espadões debaixo do paletot […].
Entre o texto segundo o Acordo de 45 e o de 1990, há apenas um c a mais!
[…] Os duelos sucedem-se tão regularmente como as madrugadas; e o primeiro espectáculo (espetáculo, para grafar à Acordo de 1990) que o sol, o velho e dourado Febo, avista, ao assomar a rósea varanda do Oriente, é um francês em mangas de camisa e de florete na mão, à beira de um arroio ou nas ervas de um prado, procurando varar as vísceras essenciais de outro francês. […] Não pode agora um honesto melro gorjear as suas reflexões da alvorada, sem que o venha interromper a velha caleche de onde emergem, soturnos e de negro vestidos, sujeitos com um molho de espadões debaixo do paletó […].
Segundo o reduzido acordo ortográfico posto em prática em 1973, os advérbios terminados em mente e as palavras com sufixo inho, deixaram de ser acentuados com acento grave. Antes daquela data, escrevia-se necessàriamente, sòzinho, espontâneamente, etc., passando a escrever-se necessariamente, sozinho, espontaneamente, etc. Continua a manter-se no novo acordo. Será que quem nasceu depois de 73 necessita da gravidade desse acento? Mesmo aqueles que já eram homens feitos habituaram-se. Trata-se de uma questão de hábito e, como se sabe, ele é uma segunda natureza…
Eis o bicho-de-sete-cabeças! Afinal, um tigre de papelão. Os leitores coetâneos do primeiro texto com certeza se sentiram “agredidos” com as alterações do acordo que sucedeu ao de 1911. Teriam razão? E os atuais leitores? Apenas com um c de diferença, acham que será o bastante para fazer rodopiar o juízo? Não será tudo isto uma questão de lana-caprina? Uma tempestade num copo-de-água? Façam o favor de dizer ou escrever das suas razões. Obrigado.
Cristóvão de Aguiar
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