Só é novo o que está esquecido
(atribuído à modista de Maria Antonieta, rainha de França)
1. Sem me pronunciar sobre a concreta aplicação ao mundo informático, para mim um enigma desinteressante, chamo a atenção para o pressuposto implícito nas propostas do Clavis: confiemos na mão invisível, ou seja, confiemos em que o mundo é feito de tal forma que permite, naturalmente, um ajustamento gradual das iniciativas particulares de cada um por meio do qual se promoverá o bem comum. Não precisamos de um chefe embirrento e ambicioso para decidir, sozinho, em nome de todos, seja esse chefe um primeiro-ministro iluminista ao modelo do marquês de Pombal (contemporâneo de Adam Smith, a quem se devem as primeiras e revolucionárias reflexões sobre o liberalismo económico...) ou o agora tradicional gestor de multinacional. Sede bons, e o resto virá por acréscimo, se quisermos dar a isto um tom um poucochinho mais elevado.
2. Também num outro ponto curioso o Clavis vai bater em algumas das questões primeiramente enunciadas pela teoria liberalista: é que é diferente permitir às pessoas fazerem aquilo de que gostam de as persuadir a fazer aquilo que será o seu dever, estabelecido a partir de uma hipotética regra moral; os apaches informáticos gostam de desenvolver programas, independentemente do facto de a minha felicidade se reforçar com eles; da mesma forma, Adam Smith chamou a atenção para o facto de o meu pão fresco matinal poder dever-se a um padeiro egoísta (que quer enriquecer para deixar de ser padeiro, por exemplo...) ou a um padeiro que adora o cheiro da farinha. Em ambos os casos, o padeiro tem uma boa razão para que o seu pão seja saboroso...
3. Significa isto que, num nível absolutamente básico, precisamos de regras de liberdade de trabalho: em concreto, precisamos de que o apache e o linux possam ser disponibilizados fora de situações de monopólio ou de cartel de monopolistas. Ou seja, que não haja nenhuma lei que diga “só pode fornecer programas informáticos quem esteja devidamente licenciado, etc”. Podemos pensar na conhecida questão das “Medicinas Alternativas” ou na subtil fronteira entre o astrólogo e o vigarista para imaginar a enorme quantidade de problemas que daqui derivam... problemas que são jurídicos, e não apenas económicos, pois que se trata de definir regras, e não de compreender preços.
4. Small is beautiful, como o Clavis nos tem (obrigado, meu caro!) permanentemente chamado a atenção, e enquanto pensarmos em programas informáticos ou em padeiros as coisas podem ser modeladas (isto é, apresentadas segundo um modelo conceptual) de forma relativamente simples. Uma outra dimensão da questão é a de saber se isto ainda se aplica ao tipo de organizações gigantescas que caracterizam o mundo moderno: as grandes empresas internacionais, sob a forma de sociedade anónima cujo capital só tem o céu como limite, surgiram para realizar empreendimentos titânicos, como por exemplo a abertura do Canal do Suez no séc. XIX, e desses empreendimentos depende a nossa vida tal como a conhecemos hoje; da mesma forma, deveremos reflectir se a produção de hardware informático ou a construção de aviões que nos levem facil, rapida e seguramente ao Brasil é tão fácil de conciliar com o neo-artesanato (no fundo, é disso que se trata). Bastará permitir a todos construir o seu próprio avião?
5. Só é novo o que está esquecido, e queria ainda falar da famigerada palavra trabalho: como acontece com quase todas as palavras que agora usamos, é uma palavra impostora. É verdade a sua ligação ao tripalium e à tortura, e por isso deu imenso jeito a Marx e aos socialistas utópicos do séc. XIX popularizá-la; a ponto de nos terem feito esquecer a palavra labor, que se assemelha ao lavrar da terra fértil. Como passar da actual sociedade de capital e trabalho para uma sociedade de ócio e labor, é o problema fundamental. Dito de outra forma, e para que o ócio não seja rebaixado à preguiça, como redescobrir um mundo em que cada um de nos ora et labora...
6. O mais curioso paradoxo das propostas utópicas está na sua referência à sua própria fundação, ou seja, no facto de ou terem como pressuposto uma espécie de iluminação laica individual (a utopia tornou-se possível porque cada um começou a vivê-la dentro do seu coração) ou o seu preciso contrário (a utopia tornou-se possível porque um chefe assim o impôs, seja esse chefe o filósofo-rei ou o colectivo proletariado de Marx). Voltando a uma simbologia tão cara a este blog, a Ilha dos Amores será um dia (ou não...) trazida por Vénus; mas – como devem navegar os pilotos da frota marítima, enquanto a Ilha não desponta no horizonte, enquanto apenas sabem da Índia, como devem conduzir a Barca enquanto combatem os deuses do Mar para que possam um dia reconhecer a Ilha e reconhecer-se no achamento dela? Como sulcar o alto mar guardando no coração a pátria amada? É que, meus amigos, no alto mar andamos já, e tormentoso ele vai.
7. Voltemos a olhar para a open source do Clavis. E pensemos se é possível criar desta forma não já os produtos (materiais, como o pão, ou intelectuais, como os programas de software) mas as próprias regras de justa conduta em que a produção e distribuição deles assenta. Poderão as regras básicas de convivência social, que são sempre regras de atribuição de propriedade, ser encontradas e progressivamente definidas a partir da acção individual de todos, em vez de serem produzidas pela empresa-Estado e pelos seus sábios legisladores? É este o centro da teoria liberal (xô, Bush, não estou a falar de ti nem para ti) e é este o olho do furacão. Aqui, estamos frente a frente com o Adamastor. Ao Gama, bastou perguntar-lhe o seu nome. E porque a filosofia se não reduz à ciência, proponho que meditemos no que isto quererá dizer...
2 comentários:
Apenas para saudar a "modista da Maria Antonieta". Quanto ao resto, há aqui, de facto, muito para meditar...
bem, brevemente publicarei uma muito merecida réplica detalhada ao post de Casimiro Ceivães.
grato deste logo, pela sua análise aturada e cuidada...
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