A Marco Túlio Cícero
"(...) Toda a clerezia da Sé estava ali apinhada, e o príncipe, sem dar palavra e com os olhos fitos no chão, parecia envolto em fundo pensar. O silêncio era completo.
Por fim Afonso Henriques ergue o rosto carrancudo e ameaçador e disse:
- Cónegos da Sé de Coimbra, sabeis a que vem aqui o infante de Portugal?
Ninguém respondeu palavra.
- Se não sabeis, dir-vo-lo-ei eu - prosseguiu o príncipe -: vem assistir à eleição do bispo de Coimbra.
- Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição - disse o mais e velho e autorizado dos cónegos que estavam presentes e que era o adaião.
- Ámen - responderam os outros.
Esse que vós dizeis - bradou o infante cheio de cólera -, esse jamais o será. Tirar-me quis ele o nome de filho de Deus; eu lhe tirarei o nome do seu vigário. Juro que nunca em meus dias porá Dom Bernardo pés em Coimbra: nunca mais da cadeira episcopal ensinará um rebelde a fé das santas escrituras! Elegei outro: eu aprovarei vossa escolha.
- Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição - repetiu o adaião.
- Ámen - responderam os mais.
O furor de Afonso Henriques subiu de ponto com esta resistência.
- Pois bem! - disse ele, com a voz presa na garganta, depois de olhar terrível que lançou pela assembléia, e de alguns momentos de silêncio. - Pois bem! Saí daqui, gente orgulhosa e má! Saí, vos digo eu! Alguém por vós elegerá um bispo...
Os cónegos, fazendo profundas reverências, encaminharam-se para as suas celas, ao longo das arcarias da crasta.
Entre os que ali se achavam, um negro, vestido de hábitos clericais, tinha estado encostado a um dos pilares, observando aquela cena; os seus cabelos revoltos contrastavam pela alvura com a pretidão da tez. Quando o príncipe falava, ele sorria-se e meneava a cabeça, como quem aprovava o dito. Os cónegos começavam a retirar-se, e o negro ia após eles. Afonso Henriques fez-lhe um sinal com a mão. O negro voltou para trás.
- Como hás nome? - perguntou-lhe o príncipe.
- Senhor, hei nome Çoleima.
- És bom clérigo?
- Na companhia não há dois que sejam melhores.
- Bispo serás, Dom Çoleima. Vai tomar teus guisamentos, que hoje me cantarás missa.
O clérigo recuou: naquela face tisnada viu-se uma contracção de susto.
- Missa não vos cantarei eu, senhor - respondeu o negro com voz trémula -, que para tal auto não tenho as ordens requeridas.
- Dom Çoleima, repara bem no que te digo! Sou eu que te mando vás vestir as vestiduras de missa. Escolhe: ou hoje tu subirás os degraus do altar-mor da Sé de Coimbra, ou a cabeça te descerá de cima dos ombros e rolará pelas lájeas deste pavimento.
O clérigo curvou a fronte. (...)"
Alexandre Herculano, O Bispo Negro (1830)
32 comentários:
Casimiro, para além da pujança literária deste trecho, quer este post dizer que, no que respeita às relações entre poder temporal e espiritual, advoga a posição gibelina? Tive muitas simpatias por isso, quando há quase 30 anos lia avidamente Julius Evola (sim, assustem-se, eu li um autor maldito!), mas hoje vejo que implica passar do papocesarismo da igreja pós-Constantino para o cesaropapismo, conforme o disse Nicolas Berdiaev, que li não menos avidamente. Em qualquer dos casos, só vejo violência e prepotência. Prefiro, no contexto da mensagem cristã,a ideia de que todo o homem tem uma intrínseca vocação para ser rei e sacerdote, rei-sacerdote, Melchisedec. Penso que é isso que se anuncia na dupla figura central do Painel atribuído a Nuno Gonçalves e que está implícito no mito do Encoberto, duas figuras que creio falarem de cada um de nós.
Agora também não vejo aqui resposta para a questão da relação entre as coisas e o absoluto, enquanto questão metafísica e ontocosmológica que não pode ser reduzida à equação dos poderes no mundo humano.
Saudações
Grande Afonso...
Além deste Afonso ser uma mera ficção literária, se soubéssemos hoje de alguém que fizesse isto teríamos por ele o mesmo desprezo que por todos os ditadorzecos... Mesmo que não fôssemos clericalistas. Muito pode a cegueira do patriotismo estreito...
Paulo, bom dia :)
Ah, que só vim aqui a correr e não tenho tempo para responder! Mas achei delicioso o 'autor maldito'... Curiosamente, também foi depois dele que li algum Berdiaev (não tão facil de encontrar)...
Volto mais logo.
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Renato, grande Afonso sim. POr isto e muito mais...
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Oestrimnia, ESTE Afonso é uma ficção literária, claro. Vou ver se encontro o texto em que ela se baseia, que é do século XIII... também gosto mais dos sabores originais, e não das cópias.
As cegueiras podem sempre muito. A do patriotismo e a do meta-patriotismo. E o estreito, às vezes, chama-se Estreito de Magalhães. Mistérios do mundo.
O que me parece estreito, para usar um eufemismo, é aplicar o nosso código de valores a outras épocas. Se formos por esse caminho, ninguém se salva. Faz algum sentido acusar Afonso Henriques de não ter sido um "democrata"?!...
A situação, obviamente ficcional, tem contudo um fundamento histórico. Tratava-se, logo no tempo de Afonso Henriques, de garantir a nossa independência. Foi por isso, dele logo, que ele batalhou. E por isso ele foi grande. Na minha perspectiva, obviamente...
A equação, nos dias de hoje, não se põe nos mesmos termos: a Igreja já não é uma "ameaça". E a sociedade é, cada vez mais, pós-religiosa...
Nunca li, vou ver se arranjo tempo. Agradeço a atenção mas cada vez me apetece menos estar aqui, é um rebanho, e o baile de máscaras é cada vez maior.
Beijo.
Sobre os textos originais, numa rápida busca no google a partir do nome "Graça Videira Lopes":
MODELO E CONTRA MODELO: O RETRATO DE AFONSO HENRIQUES NOS TEXTOS MEDIEVAIS
Graça Videira Lopes
"Não penso, pois, ao contrário de António José Saraiva, que estas duas narrativas
primitivas sobre Afonso Henriques sejam assim tão incongruentes no modo como
“cosem” os vários retalhos, nomeadamente os relativos à tradição cavaleiresca e à
tradição monástica. A figura de Afonso Henriques que nelas se desenha tem uma lógica
diacrónica, ou seja, a narrativa acompanha um percurso que vai da imprudência e
excesso de confiança juvenis (patentes no seu comportamento na batalha de S.
Mamede), à arrogância do conquistador e do chefe do bando de cavaleiros vitoriosos (na
prisão da mãe e na “estória” do bispo negro), até à sensatez do homem maduro (no
apoio às ordens militares e outras actividades civis e na sua piedade na fundação de
mosteiros)".
Reduzir D. Afonso Henriques a"o Afonso que põe a padralhada na ordem" é políticamente correcto e "muito giro", mas em termos de História - refiro-me à História séria - é pouco sério.
Quanto à padralhada - não necessáriamente o bispo negro, que provávelmente não existiu, mas qualquer um de tantos que se portaram ainda mais cobardemente do que este - a tradição é bem antiga: Judas traiu Jesus Cristo, S. Pedro negou-O 3 vezes, todos os outros, com excepção de S. João, fugiram a tremer de medo... pouco tempo depois, Sto Estêvão torna-se o primeiro de uma imensidão de mártires que, até hoje, continuam a dar a sua vida por Algo que o mundo diz não ser credível - e não faltam imaculados que se escandalizam com as nódoas da padralhada, que têm como desporto favorito, atirar-lhe a 1ª pedra, seguida de mais umas 50 por dia!
Cara Maria
1. Que eu saiba, ninguém aqui pretendeu reduzir o Afonso Henriques àquele que "pôs a padralhada na ordem" (a expressão é sua).
2. O ponto é que, na altura (hoje já não, ou nem tanto), havia interesses conflituais: Afonso Henriques defendeu a independência de Portugal; as pessoas da Igreja
defenderam, muito legitimamente, os interesses da Igreja (que, nalguns casos, não eram coincidentes com os interesses de Portugal). Esse foi aliás um "conflito" que, como se sabe, se estendeu por muitos séculos...
3. Alguns morreram por isso? Curvo-me perante todos aqueles que lutam pelas suas convicções, a ponto de darem a vida por elas...
E a ignorância.
Qualquer coisa de irracional como um cão mau que ladra aos vizinhos.
Deixo aqui o link para a saborosa versão original (é preciso procurar na "crónica de santa cruz de coimbra"). O "Director's cut", com a ainda mais significativa segunda parte da história, a da visita do Cardeal de Roma.
http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/cbreves.htm
Agora um esclarecimento, que espero seja útil quer à Maria quer ao Paulo: o que estava aqui em causa era a excomunhão lançada sobre a 'terra'. O que significa não uma excomunhão pessoal do rei mas o 'interdito' de se celebrar missa, de dar aos mortos sepultura cristã. A todos, aos bons e aos maus. Julgo que os bispos deixaram de fazer isto há alguns séculos.
Será isto gibelinismo? Será ser contra a 'padralhada'? Eu fico estupefacto (os Reis de França atenuaram esta ameaça de uma forma curiosa: a "Chapelle Royale", no palácio do Rei, estava desde o séc. XII fora da jurisdição do bispo de Paris...)
Mas, Paulo, pensando bem: não sei se seria gibelino no séc. XIII; a partir do tempo do Voltaire, seria sem dúvida guelfo.
Tambémm no contexto da mensagem cristã: a vocação, que é de todos, perde-se na maior parte, por motivos que não são sequer estritamente humanos... De modo que há que cuidar da Cidade dos Homens, enquanto se aguarda a Cidade de Deus. E a cidade dos homens, por ser feita de humanos, afunda-se no alto mar. Prefiro aquela que seja construída sobre a sólida rocha.
Ainda uma nota, Paulo: significativamente, nos Painéis não nos aparecem quarenta e dois S. Vicentes... Aparece uma sociedade ordenada, onde cada um tem o seu lugar (e como mostrou a historiadora Teresa Schedell, a hierarquia da Corte está, mesmo, escrupulosamente retratada...). Há um rei, há um condestável, há nobres, clérigos, homens de letras e pescadores. A essa ordenação preside um Centro, sim. E nesse Centro não está um Rei, nem um Clérigo. Mas o resto não se dissolve no espaço informe do Mar. Por isso, esses que ali estão retratados venceram-no.
Não foram só os reis de França a atenuar as consequências do interdito. Havia muitas excepções - entre elas,se bem me lembro, as igrejas franciscanas tinham o privilégio de continuar a celebrar o culto em tempos de interdito.
No seu confronto com os poderes do mundo, a Igreja tinha aqui a sua grande arma, mas não deixava de se preocupar com o "cuidar das almas". Este dilema esteve bem presente no seu braço de ferro com o nosso D. João IV (neste caso a arma era o "direito de apresentação") nos tempos da Restauração.
Quanto à construção da cidade dos homens, aconselho vivamente a obra de um agnóstico, Rodney Stark, "A Vitória da Razão", que mostra como a Igreja em geral, e os beneditinos em particular, ao cuidar da Cidade de Deus, fizeram maravilhas pela Cidade dos Homens (construiram sobre rocha - no sentido evangélico da expressão).
Renato Epifânio
Exclamar "grande Afonso" a propósito de um texto em que D. Afonso Henriques nos aparece a valer-se do seu poder para vergar um bispo cobarde, obrigando-o a neutralisar a tomada de posição do clero, permite-me fazer a leitura que fiz...
Ariana Lusitana
Presumo que a "ignorância" e o "cão mau que ladra aos vizinhos" se refere aos que dão a vida pelas suas convicções , referidos pelo Renato Epifânio a propósito dos que aceitaram o martírio pelo Evangelho.
Quanto à ignorância
nos meus tempos de liceu aprendi, nas aulas de Filosofia, que: 1º não há provas da existência de Deus; 2º não há provas da inexistência de Deus - antes de chamar ignorantes aos que não estão de acordo consigo - vá aprender um pouco de Filosofia!
Quanto aos cães que ladram aos vizinhos - soou-me a auto-retrato...
Vou gravar essa caixa de comentário para rir quando me assaltar aquela melancolia da saudade.
A lei dos estúpidos é até inteligente, para quem dê importância, eu não daria.
Casimiro, não separo a cidade dos homens da cidade de Deus porque me situo para além dos homens e de Deus. E no Painel das Janelas Verdes pratico a leitura segundo o quarto sentido de toda a exegese sagrada, segundo a tradição cristã, o anagógico: na dupla figura central transcende-se as representações sócio-políticas e históricas, superficiais como sempre. Fala-se, pelo contrário, de todos nós, neste preciso instante. De si, de mim e de todos os que lêem ou não estas palavras.
...
Para além dos homens e de deus? Bem, assim tão longe não o conseguia acompanhar, nem que quisesse.
Mas isso fez-me lembrar uma parte do texto do Afonso Botelho que não está incluída no que há momentos publiquei aqui: tecnicamente, face à cidade, é um 'hostis'.
Quanto ao quarto sentido da interpretação da figura central, nada a dizer, nem contradiz o que eu afirmei; apenas ressalvei que as outras figuras, significativamente, se não dissolveram, mesmo na Presença. Pelo contrário, ordenam-se e ordenam-se hierarquicamente.
Maria, para vergar um bispo e depois um cardeal, como verá se consultar a história completa. Dois cobardes.
Agora, e porque é que usar o poder espiritual para vergar um rei já não é cobardia?
O que é que o fundo da consciência tem a ver com as imagens e conceitos que produz? Somos tão ingénuos...
Só chamei cobarde ao bispo negro - D. Afonso Henriques (partindo do princípio que isto aconteceu), teve coragem no confronto com o poder espiritual, os clérigos tiveram coragem no confronto com o guerreiro!
à sua pergunta, respondo com outra pergunta: um pai castigar um filho é cobardia?
Paulo, agora realmente não percebi... se estiver a responder ao lado, diga-me. Mas acho que já uma vez falámos disto. O real é velado, mas sobe-se (ou é possível subi-lo) como numa escada (saber em que condições, ou como, é outra questão). Por isso é que deus em última análise é uma Presença, ou uma Pessoa, e não um caos, um nada, uma ilusão ou um labirinto. E o mundo é o seu verbo, e não o seu engano ou a sua ausência. Esta é a minha convicção, sem dúvida formada no judeo-cristianismo. Se assim não for, sabê-lo-ei quando morrer, e esta é outra convicção. Não tenho como ter outras.
Também por isso, a escada sobe-se (ou pelo menos considera-se, ou contempla-se) from the bottom, que é onde estamos.
Finalmente, se o escalar dela por vontade individual é, pelo menos, coisa arriscada (mas onde cada um saberá de si), induzir ou facilitar sequer um escalamento colectivo é realmente hybris. O que já não é hybris é sacralizar o mundo, no sentido outra vez do texto do Afonso Botelho que publiquei: ordenar imperceptivelmente as coisas da terra por forma a que todas elas tenham o seu lugar, mais do que o seu espaço. Em liberdade e em hierarquia, ou seja, num movimento de elevação (a partir do 'baixo') e não num movimento de assalto.
Não sei que diga mais num espaço ( e lugar) destes...
Maria, às vezes é: por exemplo, quando dom José castigou o marquês de Távora. Mas que pergunta estranha.
Casimiro, após ler Mestre Eckhart e Longchenpa, entre outros, não posso ter uma visão hierárquica da realidade nem do mundo. E se "Deus" não fosse senão o infinito imanente que é a natureza primordial e sempre instante de tudo? E se não fizesse qualquer sentido falar de escada, de base, de topo e de ascensão? E se já fôssemos, nós e todas as coisas, agora mesmo, tudo o que há para ser? E se só houver morte para quem não vir as coisas assim? E se isto tudo tiver profundas consequências sociais e políticas, apesar de não serem o essencial da questão? O que deixo para depois.
Por isso alguns homens se afastam da Cidade, e quem sabe onde os seus caminhos os conduzem? Eremitas, santos, magos negros, tresloucados - quem sou eu para os classificar, os distinguir, lhes conceder ou não o passaporte ou a benção? E o meu caminho também se me impõe.
Mas
Que o príncipe, por causa deles, não desmobilize as sentinelas, não deixe por guardar os rebanhos, não deixe de comparecer à Sala da Justiça.
E se um dia o próprio Príncipe for chamado pela luz ou pelo vento ou pela Treva - que deixe seguir as regras antigas da sucessão real.
O mais que pode acontecer à cidade é que, um por um, todos dela desertem - chamados para um qualquer outro lugar. Alguém ou alguma coisa cuidará então dos rebanhos e das oliveiras.
Demasiados sofreram com as visões de profetas, ou de lobos na sua pele.
E entretanto que nunca, mas nunca, um homem seja lapidado por ter profetizado.
Desculpe este tom de conto infantil, mas é que a questao aparece-me assim.
Pois é, a Cidade... Quantas vezes me pergunto se não é ela o grande desvio...
Tem graça...
Essa seria uma discussão interessantíssima. Notou o texto que aqui trouxe do Botelho? Enquanto o transcrevia recordei (já que falámos de leituras mais ou menos juvenis) o Saint-Exupery e a Citadelle. E as Falésias do Junger. (este deve ser maldito tambem). E a assombrosa percepção (auto-percepção) do Lobo das Estepas: nao integrar a Cidade, e entendê-la... aqii está o que talvez seja uma característica europeia (da Europa profunda) que talvez passe despercebida.
Como serão as cidades do Oriente?
Casimiro, fui amigo muito próximo do Afonso Botelho, o que não quer dizer que concordasse com ele, e todas essas leituras foram também minhas. Revi-me no Lobo das Estepes.
Quanto às cidades do Oriente, a que mais me impressionou, ao ponto de temer querer ficar lá, foi Varanasi/Benares, que não é propriamente uma cidade, mas um imenso templo shivaíta onde o caos e a ordem, a morte e a vida se mesclam intimamente. Uma cidade que não se exorcizou da natureza e do sagrado divino-demoníaco, como as nossas da Europa, com algumas raríssimas excepções.
Só pude ler o Afonso Botelho há poucos anos, nunca o conheci.
Essa descrição de Benares vai exactamente de encontro à imagem mítica (imaginária) que tenho do Oriente. Mas encontro bastante sagrado-demoníaco nas cidades ocidentais...
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