(Fotografia retirada do site do deputado André Almeida)
"A palavra do deputado faz fé, não carecendo por isso de comprovativos adicionais". É esta a redacção do ponto sete do novo regime de presenças e faltas dos deputados em plenários, que o presidente da Assembleia da República fez aprovar. Jaime Gama acabou por deixar a possibilidade de os deputados poderem alegar ausência por motivo de doença sem que para isso seja necessária a apresentação de quaisquer justificativos nos primeiros cinco dias. Excepto quando a doença "se prolongue por mais de uma semana".
Ou seja, um deputado que falte e que com isso impeça ou prejudique uma votação pode invocar doença sem que tenha que apresentar qualquer tipo de atestado médico.De fora ficou o apertar da malha aos faltosos, exigido por vários partidos após o episódio de 5 de Dezembro, quando a ausência de 48 deputados impediu a aprovação de um projecto de resolução do CDS/PP que recomendava ao Governo a suspensão da avaliação dos professores."
Segundo problema: o que há de "noticioso" nesta notícia?
Ser deputado é exercer uma função vital em democracia. Cada deputado representa-nos enquanto cidadãos, mesmo que não tenhamos votado na sua lista (ou no seu “partido”). É pois, natural, que o estatuto de deputado deva ter prerrogativas que estejam à altura dessa alta representação, uma vez que nós, fonte da soberania, depositamos nos nossos representantes um mandato que deveria ser pessoal e insusceptível de ser usurpado por interesses alheios a essa função representativa.
O que acontece é que os deputados representam os directórios partidários e os interesses, muitos deles ocultos, de grupos ou de particulares de todo alheios ao interesse público.
Se o estatuto de deputado deve ser devidamente enquadrado na hierarquia do estado, dada a alta dignidade da função, isto em termos principiais, o papel de deputado, o conjunto de funções e de deveres atribuídos a quem exerce esse mandato representativo, deve ser exigente e deve revestir-se duma função exemplar e simbólica.
É óbvio que a palavra de um deputado deve merecer o mais alto respeito e a atenção devida a quem exerce uma função de tão grande importância. Deveria também servir de penhor do cumprimento das promessas feitas ao eleitorado, e isso só se alcançaria se, por um lado, cada cidadão investido nas funções de deputado fosse um homem ou mulher de palavra e, por outro, a relação entre os deputados e os seus eleitores fosse o mais directa possível e não houvesse entre eles o emaranhado de enleios que transforma os deputados em títeres dos titereiros partidários, incapazes de porem a sua sã consciência (pressupondo que o possuir uma sã consciência seria um atributo essencial de quem quisesse exercer essa função) ao serviço do Bem comum.
Assim sendo, atendendo à função exemplar e simbólica do deputado, seria de todo lógico que no que se refere às faltas aos deveres parlamentares, e o dever de assiduidade e de presença é fundamental, a justificação das mesmas seguisse o que está estatuído para a função pública, com as necessárias adaptações à função de deputado. Não haveria aqui uma subalternização dos deputados, mas, pelo contrário, uma dignificação do serviço público do qual os mandatos resultantes do sufrágio universal são um exemplo insigne e digno de ser considerado paradigmático.
Por isso esta iniciativa do Presidente da Assembleia da República não contribui para dignificar a função de deputado, estando em linha com as recentes, e reiteradas, medidas de diminuição da importância da função pública tomadas pelo governo que está neste momento em funções.
De acordo com o discurso oficial, os funcionários públicos são por natureza desonestos, preguiçosos, esbanjadores e causadores desse antigo desastre nacional, antes da actual hecatombe chamada “crise financeira”, que os senhores da economia apelidaram de défice.
Foram, portanto, gerados numa região da incubadora nacional oposta à de onde brotaram os deputados, esses impolutos, cumpridores, económicos, representantes da nação. Abstruso exemplarismo: os representantes são mais perfeitos do que os representados. Desconhecedores da origem de tal passe de magia, não poderemos, por agora, vituperar a memória de Platão, esse “costas largas” que tem sido responsabilizado por muitos males modernos.
Ora, os funcionários públicos estão neste momento sujeitos a um regime de faltas kafkiano, e sigo o normativo que se aplica à função de professor, por ser mais próximo da minha experiência: se um professor tiver que faltar, para ter a falta justificada, deve, antes da falta, o mais cedo possível, avisar o órgão de gestão de que terá que falta no dia tal à hora tal, terá, também que redigir um requerimento ao presidente dó órgão de gestão a pedir para faltar, e, ainda, que apresentar um plano de aula para que outro professor possa dar uma aula de substituição à turma, ou às turmas que serão previsivelmente prejudicadas pela falta.
Um cenário: às quatro da manhã o filho menor de nove anos dum professor acorda aos gritos com uma dor. O professor acorre com o filho ao serviço de urgência onde permanece das cinco da manhã até às vinte horas. Para cumprir o estatuído teria que, neste intervalo, ter conseguido elaborar um plano de aula para cada aula a que fosse obrigado a faltar, teria, ainda, que redigir um requerimento ao órgão de gestão a pedir autorização para faltar e teria que fazer chegar essa documentação à escola antes da falta.
A prática e algumas alterações ad hoc vêm possibilitando o cumprimento meio arrevesado destes malabarismos, mas as incongruências existem e não deixam, mesmo quando são ignoradas, de ser aberrantes.
Segundo o processo de avaliação dos professores que está em vigor, um professor só poderá ter muito bom ou excelente se não tiver dado qualquer falta. Pelo que ter família ou filhos é altamente desaconselhável para quem é professor. Ter saúde também, uma vez que isso é uma condição para se poder estar doente.
Contudo, há algumas variações que permitem ajustar o que parece desajustável: os professores podem trocar aulas quando vêem que têm que faltar e se as aulas de substituição forem previamente combinadas, quem falta não tem falta. O que gera o caos. Quem está pela primeira vez numa escola arrisca-se a não encontrar quem queira entrar no esquema. E há quem entre de tão boa vontade neste rodízio do falto-eu-vais-tu que os alunos por vezes nem sabem se vão ter História ou Educação Física.
Nada como a clareza. Quem falta justificadamente deve apresentar uma justificação legal. Quem falta injustificadamente, deve ser penalizado. E isso deve aplicar-se aos deputados. Trazer uma justificação, médica ou outra, não é vergonhoso, é um sinal de respeito pela instituição que se serve.
13 comentários:
No plano da idealidade, a palavra de qualquer deputado, bem como de qualquer fucionário público, devia chegar e bastar...
No plano da realidade, e dado o estado a que chegámos, não chega. Manifestamente...
Por mais que isso (justamente) revolte os (muitos)deputados (e todos os demais funcionários públicos) honestos que (ainda) existem...
Ou então, como disse o Presidente Lula (cito da 'Veja' desta semana):
"Uma gripe, num cabra mofino, ele fica de cama; num cabra macho, ele vai trabalhar e não perde uma hora de serviço."
Este regime é uma vergonha e são coisas como estas que proponho que o MIL comece a denunciar sistematicamente, como timbre de uma intervenção cívico-política própria e independente da partidocracia, de que o país tão urgentemente necessita.
Temos que saber a diferença entre aquilo que é "core" do Mil do que não é.
Há aqui, quanto a mim, um deslizamento da nossa acção que se insere na lusofonia, daquilo que é tão só um assunto muito lateral dos assuntos internos ao nosso país, que não deixa é certo de ser de extrema importância.
O que se poderá fazer, e mesmo assim continuando a ser muito externo ao nosso âmbito, é usar o Núcleo Português do MIL para fazer tal comunicado.
De outra forma corremos o risco de ver sair o MIL do seu "core business", o que até do ponto de vista de marca pode vir a perder força e identidade como movimento, dispersando-se em áreas de enorme espectro e perdendo o foco. Que ideia terão os futuros membros quanto a um movimento desfocado?
Se por ventura houver um qualquer tema fracturante que não seja respectivo à lusofonia, dou a sugestão para que nunca, mas mesmo nunca o MIL se ponha em campo.
Por outro lado os temas sobre a lusofonia são tão vastos e importantes que o tempo é curto para olharmos para o lado: são eles a imigração, o racismo, segurança social, acesso à saúde e educação dos emigrantes lusófonos, dos desfavorecidos, da Guiné.
Quando o MIL tiver dimensão e estabelecido o seu espaço e identidade internacional, então poderá lateralizar o seu movimento.
Aqui está mais um exemplo de um problema para nós:
Macau "nunca quis ser centro offshore ou um paraíso fiscal", diz presidente da Autoridade Monetária
06 de Abril de 2009, 12:28
http://noticias.sapo.pt/lusa/artigo/9525055.html
Renato, Casimiro, Paulo:
Da parte que me toca irei tentar contribuir para esse debate, sempre que me deparar com assuntos relevantes.
Concordo que, idealmente, a palavra dada deveria ser suficiente, mas, de facto, até para protecção da reputação dos que cumprem, as regras devem ser claras e minimamente exigentes.
E a partidocracia só se combate, dentro do actual estado de coisas, se se aprofundar a cidadania democrática. E isso só pode ser feito com melhor educação, mais participação e maior exigência no que respeita aos detentores de cargos públicos.
Uma das coisas que merecem um debate é a representatividade dos deputados e demais mandatários da nação. O que se passa com a eleição do provedor de justiça é um triste exemplo deste pântano.
Caro Eurico,
Compreendo a sua posição.
Mas não gosto da assimilação do MIL a uma "marca", embora que do ponto de vista da difusão seja importante conhecer as regras da comunicação.
E porque é que digo isto? Porque, antes da difusão do movimento e das ideias, há que ter em vista o coração, o centro irradiante de onde brotam as nossas atitudes mais genuínas. E aí o que se trata é de compaixão, solidariedade, compreensão, empatia e autenticidade. Coisas que andam muito longe da actual mundividência consumística em que vender sabão e ideiais seguem o mesmo caminho e as mesmas regras.
Não é, de certo, essa a sua intenção, mas há processos metonímicos, alheios à intenção de quem discursa, que podem gerar confusão.
E o MIL, se bem que deva apostar na divulgação, deve assentar num fundamento que não nos impeça a visão do firmamento, precisamente a mais obscurecida nos dias que correm.
O coração.
E, depois, na lusofonia o horizonte interno, é importante. Devemos ser exigentes com as instituições portuguesas para que a nossa acção como colectividade possa ser mais eficaz na afirmação dos valores da lusofonia e dos direitos humanos, dentro e fora do espaço lusófono.
Um abraço.
Esta acção faz pleno sentido no âmbito da secção portuguesa do MIL e está perfeitamente prevista na nossa Declaração de Princípios e Objectivos, que dedica uma boa parte às questões nacionais, num espírito de intervenção cívica, meta-partidária.
De acordo aliás com o pensamento de Agostinho da Silva, não vejo como possamos defender eficazmente a Lusofonia sem primeiro arrumarmos devidamente a nossa casa. A aproximação lusófona também só é benéfica se o for entre nações mais justas e bem governadas.
Mais uma vez, para que não possa haver dúvidas, e falando se quiserem do ponto de vista menos mundano, temos que ter, a meu ver, as seguintes considerações.
Tudo funciona a três níveis, já que quando se passa ao quarto, passa-se à cristalização no plano da forma.
Os três níveis, como sabem têm a génese no plano das ideias, ou da energia livre, que depois de atravessar o segundo plano da concepção ou da morte precoce tem que atravessar o terceiro plano da reacção já no plano da forma e quando viável, isto é quando ultrapassa as forças reactivas se materializa no quarto plano e deste modo começa a morrer...
Bem esta introdução serve para tentar dar a conhecer que a "marca" não tem que pertencer necessáriamente ao mundo consumista e destrutivo em que vivemos. Os construtores operativos da idade média tinham a sua marca que os identificava sem ambiguidades de todos os outros. A Cruz Templária/Cristo era uma marca perfeitamente definida da missão dos nossos navegadores.
Não podemos confundir os princípios com as apropriações consumistas da actualidade. A marca ou símbolo será sempre um elemento de identificação com uma causa, uma realidade e não com todas e quaisquer causas por mais humanitárias ou justas que nos pareçam. Para isso o MIL poderá muito bem criar outro blog de política nacional ou acção cívica.
É o problema da ambiguidade que me aflige, já que temo que aproveitando de um blog para se tratar de todos e quaisquer assuntos (mesmo que previstos na carta de princípios cuja leitura subjectiva pode cobrir assuntos como por exemplo a pedofilia ou o casamento homossexual... que nos seria completamente nefasto)caímos no risco da dispersão e divisão interna que enfraquecem o movimento. Mesmo no Nucleo Português do MIL penso que ainda é cedo para se tratar de forma amiúde de temas periféricos antes do corpo estar formado e estabelecido local e internacionalmente.
Por exemplo algo que nos devíamos meter seria por exemplo entrar em contacto com a Organização de Quadros Técnicos Caboverdianos na Travessa de Falasó
http://www.federacaocv.org/actas.php
http://www.congressocv.org/
e aproximá-los do nosso movimento.
Há tanto a fazer pela lusofonia que a questão do parlamento é secundária. Já agora peço algumas cautelas nesta fase nos ataques à classe política, dado que por um lado vamos precisar dela e por outra somos ainda um alvo muito fácil de abater.
Qualquer que seja solução a tomar por maioria, aprovarei como não poderá deixar de ser.
Concordo com o Eurico. Realmente devemos nos pronunciar em relacao a isto, mas de uma forma estrategica.
Esta na hora realmente de comecarmos a indentificar e a organizar nucleos do MIL em cada pais, com accoes diferenciadas, isto obviamente nao excluindo accoes conjuntas, mas pelo contrario estimulando cada vez mais a solidariedade trans-fronteirica.
Caro Paulo Feitais:
Estou de acordo consigo (aliás o Paulo Borges foi clarissimo). O ponto do Eurico é pertinente, no entanto, e nestas coisas é fácil a tentação da dispersão ('core business' soa forte, mas é disso mesmo que se trata). Quanto aos 'fundamentos', creio que a partir de certo ponto excedem o que é possível e desejável numa organização, e têm que se remeter ao coração dos que o integram. Isto é, nenhuma organização representará a totalidade do que somos/pensamos... Outra coisa é a harmonia entre uma e outros. Mas nisso estamos no rumo certo.
Abraço
(depois de algumas hesitações). (de novo), no rumo certo...
O debate, a discussão, a polémica, não podem ser fracturantes.
A minha reflexão em torno da "marca" não tem a ver com a intenção do companheiro Eurico, mas apenas com uma preocupação com a "leitura" do termo.
Concordo, aliás, com a visão estratégica apresentada. Mas o exercício da crítica deve ser livre e não se devem confundir as reflexões pessoais (que podem ser enriquecedoras) sobre a vida política, social e cultural do espaço lusófono, e, por inerência, português com tomadas de posição do Movimento e dos seus núcleos.
É claro que é necessário um cuidado extremo na construção do barco, mas revejo-me no espírito das Conferências do Casino e considero, algo sergianamente, que devemos abrir as avenidas da discussão.
Isso faz falta.
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