Gostamos de nos julgar senhores de nós mesmos, o que só acontece quando não reflectimos sobre isso e, sobretudo, quando não o tentamos efectivamente ser. A aparente capacidade de escolha e decisão a respeito das acções relativas aos outros e ao mundo exterior, ilude-nos quanto à efectiva soberania e independência com que nos comportamos. Com efeito, quem poderá dizer que o modo como pensa, sente e age é independente de inumeráveis causas e condições, desde factores psicofisiológicos a sociais, económicos e culturais?
Por outro lado, quem não teve, ainda que raramente, a experiência da liberdade, a experiência de não reagir imediata e passivamente, movido por impulsos, hábitos e mecanismos inconscientes, a um estímulo exterior ou interior e usufruir desse espaço para uma tomada de consciência mais profunda da situação e para uma decisão acerca do melhor a fazer, em termos de acção ou abstenção? A permanência nesse espaço de não re-acção, pelo esforço interior que implica, revela-se então uma verdadeira acção, mais difícil, condição de todo o agir externo mais consciente e livre, mais independente de factores condicionantes, externos e internos.
Há uma experiência simples que demonstra imediatamente o grau em que somos ou não senhores de nós mesmos. Trata-se de tentar focar a atenção numa dada percepção, exterior ou interior, e de aí a manter, estável e clara, durante o tempo que desejarmos. Podemos usar um objecto exterior, uma parte do corpo, a respiração, o curso dos nossos próprios pensamentos e emoções ou aquilo mesmo que estamos a fazer, como andar ou conduzir. Se tentarmos repousar a atenção em qualquer um desses objectos, observando-o e sentindo-o silenciosamente, sem comentários, veremos quão difícil é manter a concentração um segundo que seja, sem que ela imediatamente se obscureça e disperse, arrastada por mil e uma outras percepções, pensamentos, emoções, memórias e projectos. Quando isso acontece, tentemos estar conscientes disso e fazer regressar a atenção ao seu foco. Veremos que de novo nos foge e perceberemos, pelo menos, que isso a que chamamos “nós mesmos”, o centro interno da percepção de nós e do mundo, o chamado “eu”, não é tão dono de si quanto estamos habituados a supor. O que não deixa de ser incómodo. Se persistirmos contudo na experiência, treinando regularmente a atenção para permanecer estável e firme no objecto em que se foca, veremos que gradualmente ela desenvolve essa capacidade, diminuindo a sua agitação, com todos os benefícios psicofisiológicos daí decorrentes.
Se fizermos honestamente esta experiência e reflectirmos sobre ela, não podemos deixar de reconhecer as suas fundas e graves implicações, a todos os níveis. Parece que toda a nossa cultura e civilização assenta na suposição de que somos sujeitos plenamente conscientes e livres, responsáveis pelo que pensamos, dizemos e fazemos. Esta experiência mostra que não o somos, embora o possamos ser, se nos treinarmos para isso, o que nos torna responsáveis por não o sermos plenamente.
Enquanto não formos senhores de nós mesmos, ou seja, conscientes do que se passa dentro de nós e soberanos da orientação a dar à nossa mente e à nossa vida, vivendo à mercê da flutuação de estados mentais e emocionais compulsivos e reactivos, dificilmente seremos outra coisa do que marionetas agitadas pelos seus poderosíssimos fios invisíveis. Enquanto o formos, somos o ingénuo e frágil joguete de todas as forças mais obscuras que lutam pelo domínio do mundo: humanas e não humanas, religiosas, culturais, políticas e económicas. Enquanto o formos mais não seremos do que escravos agrilhoados à convicção de sermos livres.
O auto-conhecimento e o treino da atenção são a condição indispensável de um exercício consciente da cidadania e de uma acção benéfica no mundo exterior.
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra).
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa).
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286.
Donde vimos, para onde vamos...
Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)
Albufeira, Alcáçovas, Alcochete, Alcoutim, Alhos Vedros, Aljezur, Aljustrel, Allariz (Galiza), Almada, Almodôvar, Alverca, Amadora, Amarante, Angra do Heroísmo, Arraiolos, Assomada (Cabo Verde), Aveiro, Azeitão, Baía (Brasil), Bairro Português de Malaca (Malásia), Barcelos, Batalha, Beja, Belmonte, Belo Horizonte (Brasil), Bissau (Guiné), Bombarral, Braga, Bragança, Brasília (Brasil), Cacém, Caldas da Rainha, Caneças, Campinas (Brasil), Carnide, Cascais, Castro Marim, Castro Verde, Chaves, Cidade Velha (Cabo Verde), Coimbra, Coruche, Díli (Timor), Elvas, Ericeira, Espinho, Estremoz, Évora, Faial, Famalicão, Faro, Felgueiras, Figueira da Foz, Freixo de Espada à Cinta, Fortaleza (Brasil), Guarda, Guimarães, Idanha-a-Nova, João Pessoa (Brasil), Juiz de Fora (Brasil), Lagoa, Lagos, Leiria, Lisboa, Loulé, Loures, Luanda (Angola), Mafra, Mangualde, Marco de Canavezes, Mem Martins, Messines, Mindelo (Cabo Verde), Mira, Mirandela, Montargil, Montijo, Murtosa, Nazaré, Nova Iorque (EUA), Odivelas, Oeiras, Olhão, Ourense (Galiza), Ovar, Pangim (Goa), Pinhel, Pisa (Itália), Ponte de Sor, Pontevedra (Galiza), Portalegre, Portimão, Porto, Praia (Cabo Verde), Queluz, Recife (Brasil), Redondo, Régua, Rio de Janeiro (Brasil), Rio Maior, Sabugal, Sacavém, Sagres, Santarém, Santiago de Compostela (Galiza), São Brás de Alportel, São João da Madeira, São João d’El Rei (Brasil), São Paulo (Brasil), Seixal, Sesimbra, Setúbal, Silves, Sintra, Tavira, Teresina (Brasil), Tomar, Torres Novas, Torres Vedras, Trofa, Turim (Itália), Viana do Castelo, Vigo (Galiza), Vila do Bispo, Vila Meã, Vila Nova de Cerveira, Vila Nova de Foz Côa, Vila Nova de São Bento, Vila Real, Vila Real de Santo António e Vila Viçosa.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
8 comentários:
Como podemos ser senhores de algo que nao existe?
Eis o "ovo de Colombo" para todos os advogados de defesa...
Sei do que fala, pratico tiro, e "foco-me" perfeitamente no alvo, sem precisar de fé.
Ja houve propostas, da parte de grupos de cariz religioso ou reunidos a volta de figuras espiritualmente carismaticas, de introduzir tecnicas de meditacao no curriculo escolar. Uma das mais recentes veio do guru Maharishi Gandesh Yogi da Meditacao Transcendental.
Os beneficios da meditacao no rendimento escolar e nas relacoes interpessoais estao cientificamente comprovados, inclusive por estudos feitos junto de monjes Budistas. Portanto, e recomendavel incluir a meditacao no curriculo escolar como practica educativa.
No entanto, como o podemos fazer de uma forma que esteja livre de toda e qualquer influencia da doutrina ou hierarquia de religioes organizadas, seitas, etc. e de uma forma que respeite o pluralismo religioso e a laicidade do Estado?
Alguém fala de fé ou religião? O treino da atenção não implica acreditar ou confiar em nada, a não ser na capacidade de experiência e conhecimento directo de si por si mesmo.
É uma prática cada vez mais difundida, em empresas, hospitais, prisões. Os serviços de saúde norte-americanos vêem nela a alternativa aos anti-depressivos e ao Prozac, embora isso seja reduzir o autoconhecimento às suas funções terapêuticas
Quanto a existirmos ou não, remeto isso para a experiência. Qualquer posição a priori sobre a questão é metafísica abstracta. Que supõe, todavia, uma prévia definição do que é "existir".
É curiosa a assimetria aparente entre duvidar da auto-existência e duvidar da existência do Outro.
Falo, por exemplo, de uma situação de recusa de auxílio, ou da negação do desvalor de uma acção.
O que passe daí parece-me igual à negação do movimento com que os gregos tanto se entertiveram.
É talvez a minha maneira de pensar como jurista, mas diria que seguimos a regra "na dúvida, trata os outros como se existissem".
Depois, se essa regra puder ser aplicada a nós mesmos, o efeito prático final é o mesmo que o da admissão 'ingénua' (cartesiana?)da existência - uma vez que a duvida nunca poderá ser ultrapassada por um teste empírico, creio.
Mas levámos isto bem mais longe do que o que creio que o Paulo pretendia com o seu texto: o auto-conhecimento como 'pressuposto da cidadania'. Aqui, eu diria que, sempre em caso de dúvida, eu preferiria, por exemplo se vivesse em 1939, que o chefe do meu país fosse Churchill - em vez de Aleister Crowley. E não duvido de que este tivesse um auto-conhecimento abissalmente superior.
(faço notar a curiosa oposição semântica das duas últimas palavras do parágrafo acima)
De um ponto de vista mais pragmático: o Ocidente procurou, nos mil anos posteriores à queda de Roma, enmcontrar uma outra via para o equivalente ao 'resistir à escravatura das paixoes': a submissão a regras abstractas comuns. Desde o monaquismo à cavalaria e à ideia de 'lei natural'. Essa absolutização da 'pseudo-vontade' (que é um facto nas sociedades contemporâneas) é o resultado não do 'rapto' mas da 'derrapagem' da Europa (e aqui um tema para quem queira, no próximo número da Águia...
Uma alegre Páscoa a todos, conforme o que ela signifique para cada um.
Casimiro, como o mostra a história do Ocidente e do mundo, ninguém se submete a regras abstractas comuns se interiormente não resistir à escravatura das paixões!... A lei exterior nada pode perante o desregramento interior. Creio que isto é indubitável e é por isso que não vejo alternativa que não passe pela espiritualidade.
"O auto-conhecimento e o treino da atenção são a condição indispensável de um exercício consciente da cidadania e de uma acção benéfica no mundo exterior."
Enviar um comentário