Quanto mais leio - ou me dão a ler - as meditações íntimas de Fernando Pessoa mais me detenho no António Vieira:
"Para falar ao vento bastam palavras; para falar ao coração são precisas obras."
(Mas, dirás tu, é acaso o coração mais do que uma simples palavra?
E tenho que reconhecer o peso da tua dúvida. É que já me sucedeu, ao passar por um homem ferido na estrada, tornar-me mentalmente esse outro-que-não-eu, o Bom Samaritano; e mentalmente socorrê-lo, no eterno presente de tudo)
* * * * * * *
Leio no jornal a condenação por um tribunal austríaco de Josef Fritzl à prisão perpétua. Contra Fernando Pessoa ('um Fernando Pessoa'?), os juizes entendeu, decerto, que há uma continuidade entre o eu-de-agora e o passado. A teoria legal chama a isto 'imputabilidade' e é ela o fundamento da 'responsabilidade'.
Dois conceitos a rever, talvez, em nome do esplendor da verdade, do insaciável apetite pelo desvendar dos véus; a menos que...
Rilke:
E, se até algum Anjo de súbito me levasse
para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua
natureza mais potente. Pois o belo apenas é
o começo do terrível, que só a custo podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha
destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.
Por isso me contenho e engulo o apelo
deste soluço obscuro. Ai de nós, mas quem nos poderia
valer? Nem Anjos, nem homens,
e os argutos animais sabem já
que nós no mundo interpretado não estamos
confiantes nem à vontade. Resta-nos talvez
uma árvore na encosta que possamos rever
diariamente; resta-nos a rua de ontem
e a fidelidade continuada de um hábito,
que a nós se afeiçoou e em nós permaneceu.
3 comentários:
"A teoria legal chama a isto 'imputabilidade' e é ela o fundamento da 'responsabilidade'.
Dois conceitos a rever, talvez, em nome do esplendor da verdade, do insaciável apetite pelo desvendar dos véus; a menos que... "
O que em Ingles se chama um 'brain teaser'. Pode desenvolver, em nome do conhecimento e do prazer de um bom debate de ideias?
Claro; mas olhe, Ana Margarida, de vez em quando tenha paciência comigo porque não tenho muito tempo livre.
Mas reveja o texto do Fernando Pessoa aqui publicado no Domingo 15 de Março ("Da radical abolição de perconceitos") e a sua interessantíssima conversa com o Paulo Borges em 'comments' ao mesmo...
Cito (o Pessoa):
"Não julguemos mais que nós, do presente, somos um laço, um hyphen mobil, entre o passado e o futuro. Não somos. Somos sim continuos mas não com o passado ou com o futuro."
Ora o pressuposto do julgamento austríaco é o de que o Josef Fritzl presente diante do juiz é "o mesmo" que o Josef Fritzl que no dia tantos de tal (no 'passado') fez ou não fez isto ou aquilo.
Se tomarmos a sério o Fernando Pessoa, não vejo como o juiz possa prosseguir o julgamento e dar a sua sentença. Não estou a afirmar que isso seja um bem ou um mal. Estou só - para já - a dizer que não vejo como o faça sem ser um farsante.
"poetas ao poder" dá nisto. Ou não? Tal como a Ana, vou fazendo perguntas...
Eu tambem trabalho (e muito) por isso dou agora espaco a outros colaboradores para continuar o debata, apoiando ou discurdando da linha de pensamento do Casimiro.
Mas nao se preocupe, que volto mais tarde;-) ...
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