A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
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Donde vimos, para onde vamos...

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Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

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terça-feira, 17 de março de 2009

Pátria

A Pátria, disse ele, começa nas pedras. Mas isso é se souberes do grito altíssimo das pedras, da ogiva que delas pode romper. Senão terás só um coração petrificado.

Não gosto de pedras, respondeu ela. As pedras são guardadas nos museus, ou as ameias dos castelos que me lembram o sangue derramado, a avidez inútil dos guerreiros cegos. São as pedras da calçada, e prefiro olhar os pés doridos dos que a percorrem. Todo o meu amor está nos homens, no sofrer animal e rasteiríssimo dos homens. As pedras estão mortas e amor é coisa de vivos. Pátria é uma palavra que inventaste para te esconder.

As pedras, sabes, disse ele, e fez um gesto como se hesitasse. As coisas vivem conforme os olhos que as vejam, os olhos abrem-se na escuridão. Há pedras dispersas no campo dos rebanhos, pedras tombadas na neve e na indiferença dos mundos, mas não é isso: a minha Pátria não é a pedra bruta do monte, a pedra morta dos cemitérios. Vê: aquela lápide diz morreu este no dia tal, e a pedra fez-se o suporte das flores que a filha trouxe na tarde de Verão, a mesa clara onde a viúva cuidou dos filhos pequenos. Nela e por ela souberam os vivos do sentido que havia no nome dos seus mortos. E mil anos depois quando já não puderes ler a inscrição apagada e quando as flores foram há tanto tempo cinza e pó tu olhas ainda e na noite que trazes à pedra podes dizer aqui foi uma vez um homem e aqui os filhos sentiram o voo tardio do corvo e talvez o mais velho tenha dito cuidarei dos meus irmãos como se a minha coragem fosse rija como a pedra que cobre os ossos do pai. E já nem sabes o nome que a pedra escreveu tão frágil, já nem sabes se a morte veio dos lobos ou da peste ou do machado de outro homem que falava uma língua estranha e talvez tivesse também tão longe um filho mais velho para aguardar, nem sabes. Mas podes dizer mesmo que não saibas e ao dizer fazes presente o presente que a pedra te deu. Mistério da memória, que é totalidade e habitação do espírito. Mistério da Pátria, que é a memória que a pedra tem.

Nem sei se essas palavras são bonitas, interrompeu ela, agora não me apetece pensar nas coisas que dizes. É sempre igual, falo-te dos vivos e da insurreição dos vivos e respondes-me com coisas que parecem poemas de solidão.

Tão sólida a solidão disse ele a sorrir, mas ela continuou:

Escuta. Eu só quero um mundo de iguais e um mundo simples e as tuas pedras e as tuas histórias são sempre histórias com qualquer coisa a mais ou a menos. Que me interessa o nome do homem que se escreveu na pedra, que me interessa o gesto da filha que também morreu, as flores de um tempo de que nenhum vento já guarda o perfume? Olha ali: aquele homem está vivo e carrega um peso tão grande. Eu livro-o da sua carga para que possa dançar. Mas tu aproximas-te para lhe dizer que ouça corvos e poemas de poetas mortos, e quem te aplaudirá mais do que o mercador que há-de lucrar com a carga? É que o homem andará até mais depressa só para te não ouvir, e chegará mais cedo ao armazém do porto onde os comerciantes se abastecem. Às vezes não sei sequer de que lado estás.

É isso, disse ele, aquele homem que está vivo carrega um peso tão grande, no fim da estrada o armazém dos comerciantes gordos. Tão sólida a solidão. Tu tentas livrá-lo da sua carga, mas no fim só terias um homem nu e um saco de trigo abandonado ao caminho. Onde se abrigará ele quando cair a noite sobre os passos de dança bêbeda?

Ah, disse ela, e então dizes-lhe dos corvos.

Os corvos de Van Gogh, disse ele, os corvos que voavam sobre campos de trigo. Sim, eu digo-lhe, e enquanto lhe digo coisas posso dividir com ele a carga tão grande, e nenhum poema será maior do que esse gesto pequeno. Mas digo-lhe que para além do armazém do porto há um navio que é o pássaro das águas, e marinheiros que aguardam o pão para largar viagem; digo-lhe a ele, que nunca viu o mar porque nasceu nos campos da pedra, que um dia do outro lado do mundo alguém acenderá um fogo na praia e dirá pela madeira do navio e pelo trigo do porão e pela audácia dos marinheiros cheguei a este lugar. Alguém acenderá um fogo do outro lado do mar, e nesse fogo brilha o trigo que parece carga tão grande, arde o caminho que hoje é caminho de solidão. Digo-lhe que olhe para além do armazém do porto porque os seus passos cansados hão-de fazer o navio dançar. Digo-lhe que olhe para trás, para trás no caminho até à casa onde dorme aquela que lhe prendeu o coração, mas para trás no tempo até àqueles que semearam o trigo e forjaram a foice que o ceifou e ergueram o castelo que dispensou o ferreiro da vigia e para trás até à pedra que se fez castelo que se fez forja que se fez seara que se fez caminho que conduz ao navio que conduz ao outro lado do mar. E quando lhe digo, sabes, partilhamos a língua dos poetas da mesma forma que partilhamos o saco que lhe pesava, e a língua dos poetas acende rosas no seu coração de homem e será ele a dizer-me nesta estrada somos iguais: voo improvável do corvo, ponte de espírito entre a pedra e o mar. E quando chegar ao armazém, que susto para os comerciantes gordos, que cautela terão que ter com as suas contas de engano. Porque os olhos do carregador sabem agora do navio e as suas mãos sabem agora da pedra e todos os seus gestos contam agora uma história maior. E a carga que transporta é afinal trigo de império, rosa inteira de uma Pátria a haver.

E é isso um homem, perguntou ela baixinho.

Não, disse ele, um homem é mais do que isso, infinitamente mais. A Pátria é uma antecâmara. Mas não te vim hoje falar do mistério maior.

17 comentários:

Ana Margarida Esteves disse...

Belissimo texto, Casimiro, muito obrigada.

"Tu tentas livrá-lo da sua carga, mas no fim só terias um homem nu e um saco de trigo abandonado ao caminho."

So se a pessoa que se oferece para carregar esse fardo o largar a meio do caminho, seja por cobardia, seja por uma medida errada das suas proprias forcas.

Para quando um texto sobre o "Misterio Maior" do qual a Patria e antecamara;-)?

Ana Margarida Esteves disse...

"Cuidado com a beleza das palavras", disse um dia uma velha senhora vizinha dos meus avos, "sao suaves como um gatinho a se rocar nas tuas canelas, mas quando te enlacam sao piores do que uma forca..."

:-P

Ariana Lusitana disse...

Miau.

Ana Margarida Esteves disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ana Margarida Esteves disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Paulo Borges disse...

Saliento que a Pátria é "antecâmara" de um "mistério maior", que porventura a precede no íntimo de cada um de nós. Pois não será isso o único que brota do "abismo do ser" e não a Pátria, como pretende o Renato? Não vejo fundamento para essa metafísica.

Casimiro Ceivães disse...

Ana Margarida, se se oferece para carregar já temos meio caminho andado... Temo mais o libertador. E cobardes sempre os teremos.

Ah, e quanto ao Mistério Maior, será este o lugar para o abordar? Francamente duvido (eu tenho uma noção 'bárbara' do Sagrado, e não me esqueço de que falar sobre o silêncio é ainda fazer barulho)

De resto, desde Eva que a beleza e os gatinhos são inevitáveis, como aliás a Ariana bem compreendeu :)

Cumprimentos,

casimiro

Casimiro Ceivães disse...

Caro Paulo, não sei se 'no íntimo de cada um' há coisas (a palavra não é apropriada) que precedem a Pátria; mas também não sei se o 'abismo do ser' de onde tudo brota apenas brota através de nós, pequenos que somos. A Pátria 'é' sem a nossa intermediação, e a Pátria 'está' em nós.

Se eu soubesse escrever um texto 'filosófico' glosaria um texto do Bergson (julgo que do Matière et Mémoire) em que ele diz que não faz sentido discutir se o universo está 'fora' ou 'dentro' de nós.

Cordiais cumprimentos,

Casimiro

Ana Margarida Esteves disse...

Pois e, Casimiro, de "libertadores", do genero que julgam que e preciso ensinar aos outros como ser livre, e que estao melhor capacitados que eles [ara o fazer, esta o inferno cheio. O extraterreno ... e o terreno.

O Casimiro tambem deve saber que, quanto mais suave a Beleza, mais cortantes saos os seus espinhos ou as suas garras.

Feminina e a Beleza, como sao os gatos, femeas ou machos, inclusive os mais calejados pela vida nas ruas.

Feminina e tambem a "massa", como ja dizia Antonin Artaud, nao e verdade, Casimiro;-)?

Paulo Borges disse...

Uma pátria não "é" sem a nossa intermediação, porque não é uma essência platónica. E não "é" nem "vale", com ser e valor sempre relativos, se não for uma mediação que espelhe e promova a realização do melhor de cada um de nós.

Casimiro Ceivães disse...

Ana Margarida, o inferno está essencialmente cheio de tagarelas. Não haverá nele mais do que um punhado de sisudos, que serão no entanto os mais temíveis :)

Os gatos existem para nos recordar como a beleza se exalta numa alma esquiva (e altiva). E é por isso que a 'massa', sendo decerto feminina, nos mostra bem como nem toda a mulher é atraente...

Casimiro Ceivães disse...

Paulo, retomando a nossa velha conversa eu diria que a Ilha já pertencia a Vénus mesmo antes de o Gama largar, ou seja, não é apenas a presença ocasional de ninfas e marujos que a torna um lugar interessante. Também não gosto muito de essências platónicas, mas não me custa supor uma realidade (mais uma vez, não sei se é a palavra adequada) cuja imagem seja a Escada de Jacob (ou a árvore da cabala, de certa forma): um percurso ascensional, com estados intermédios. Isto no sentido em que a escada existe (no sentido básico do 'realismo') quer alguém a suba quer não.
Isto levaria a considerar a hipótese de, entre o homem e deus ou o Absoluto não existir o abismo apenas transponível de um salto mas a escada de que o universo, tal como aparece ao néscio, é apenas o último e degradadíssimo degrau.
E aqui todo o espaço para a intuição dos poderes menores do paganismo ou dos anjos das tradições judaica, cristã e muçulmana, e das suas ocultíssimas hierarquias.
Mas tudo isto vai muito além do que é alcançável em debate...

Depois, para quem não aceite esta hipótese, ou esta imagem, podemos ainda evocar as velhas teorias do 'inconsciente colectivo' à moda junguiana, o 'rizoma' da personalidade (ou o lugar ontológico desse rizoma). E aí, mais do que instância de mediação (que poderia ser descrita em termos científicos pela teoria dos sistemas) a pátria fertilizará uma parte fundamental da alma. Em caso algum será 'superior' aos homens no sentido de justificar a 'pena de morte'... (como na história do Antigo Testamento, é o Justo que salva a Cidade e não o inverso)

Ana Margarida Esteves disse...

O que e na sua opiniao uma alma esquiva (e altiva)?

Ana Margarida Esteves disse...

Ano sera muito mais atraente uma alma generosa?

Casimiro Ceivães disse...

No que me meti, entre o fogo cruzado do Paulo e da Ana Margarida :)

Enfim, é a diferença entre um gato e um cão, e eu sou dos que preferem os gatos. A generosidade ficará para um post, que tenho que voltar ao trabalho... ;)

Saudações

Paulo Borges disse...

Caro Casimiro, sinto que o fundo sem fundo do nosso espírito transcende deuses, anjos, arcanjos e todas as hierarquias. Como não haveria de transcender qualquer pátria?...

Casimiro Ceivães disse...

Paulo, permita-me que me abstenha dos 'deuses' ou que ressalve o deus em que crê a parte de mim que crê. E, sempre 'de certa forma', de acordo no resto.

'Já não há judeu nem grego', e que redutor seria dizer de Clara de Assis 'eis uma alma italiana' (no outro extremo, que redutor dizer de Crowley 'a true Saxon')

O que nos separa aqui, mais uma vez, não é o Jardim, mas Babel, e não são os anjos mas os titãs. Dito de outra forma, há um ponto em que a tentativa de dirigir as massas (não o exemplo individual) se torna 'má', para usar esta palavra simples. Temo a sociedade onde o Calvino se sentisse em casa. E temo o legislador ou o filósofo que implante as palavras dos mestres. Sou um incorrigível agostiniano.