São estas emoções os comeres com que me alimento? Quão miserável sou!
Aquela a quem elegi dama dos meus mais íntimos anseios ando a oferecer isto? Quão longe estou dela?
É bom que ela possua mecanismo para preservar-se, é muito bom! Ainda bem que pode manter-se integra – embora em sonho – mas integra! E como ela é humilde, por humildade não zomba de mim.
E por ser justa, também não tem pena, esse desprezível sentimento. Ainda bem que ela possui refúgios secretos onde transforma mazelas em alegrias, e não permite, por isso, que o fraco alimento que lhe ofereço a desonre.
Poderão aqueles que me olham sentir tristeza e compaixão ao verem os cálices de tolices que bebo por raros licores, mas não pelo amargor! Mas talvez pelo fraco sentimento, pobre de alimento de se dar à alma! Ela é aquela que elegi senhora mor do meu ser, a quem ofereço cada ceitil do que recolho em meu caminho.
E por eu ser muito pobre, é bom ter ela mecanismos de defesa e sem falso egocentrismo ser alma, apenas alma, que por ela inesquecíveis e boas recordações eu guardo de pessoas, de inesquecíveis mulheres! E foi também por ela que eu amei e comigo viveram magníficos atos de ver no espelho da vida – o outro. (...)
Ainda assim, são pobres meus argumentos perante o ser que já não sou neste momento, para eleger-me digno da alma eleita. E por serem pobres, o meu ser incógnito – que não sei quem é – está muito triste encerrado em mim onde apenas reconhece os ensaios dela enquanto alma metáfora, símbolo e algo no meio do que vindo de baixo encontra com algo vindo de cima. E aí, ao encontrarem com outros algos vindos dos lados, de fora e de dentro, resultam nela e pronto: é alma! Tubo abstrato! Ou retrato de tudo que passou por mim numa espécie de relicário virtual, condenando ao chão aquele eu inferior a seus pés, e elevando ao alto aquele outro eu em sua cabeça cujo resultado final é este ser que sou sem ter certeza do que seja; porém eu em tese, mas deveras sem saber o que realmente sou...
Por isso e por serem pobres meus argumentos, quão pobre vou!
Prouvera aos céus afastar de mim tanta miséria! Houvera vontade forte para elevar-me ao alto deste atolado e alagadiço caminho de barro, por onde atolo meus pés! Quem dera desta minha sorte se comprouvessem os Deuses! Quem dera pudesse despertar do torpe estado em que me encontro e acordasse consciente de que além das trevas há luz!
Lá? Onde é lá? É onde dizem existir o arquétipo que se tornará percurso, mas não vi o curso natural das águas que demarcam o caminho, porque tentei em vão contra a correnteza do rio. Mas não temo havê-lo completamente errado ou poluído. Afinal, perder-me em definitivo, por ainda estar aqui ainda não me perdi. Sinto ainda em mim o sopro original no ato de respirar, porque afinal ainda respiro e arde-me o peito.
É verdade, são pobres os meus argumentos, mas cheirei e ainda cheiro através do olfato, porque o ar transporta as partículas do odor e ainda respiro por ainda existir o ar! Por ele cheiro e respiro como convém aos dons divinos de viver e cheirar. De tal sorte o paladar, em sabor de um excelente degustar... Outrora!
Só não toquei o céu com os pés nem com as mãos tateei a alma; lamento não ter certeza de que nunca com os pés chutei-a!
Sentir, eu senti... E sinto ainda arder-me no peito o ar da esperança, que por ser esperança não poderia arder, mas arde e arde muito!
Talvez por serem pobres meus argumentos e não saber quem sou!
Minha casa - meu corpo gasto - sem ter de verdade um lar e por não saber onde estou como saberia para onde ir? Sem saber se há um porto aonde chegar ou um abrigo contendo uma porta por onde possa entrar e lá dento repousar, o que devo pensar? O quê, enfim vou sendo ou penso que estou?
Às vezes concentro minha vontade em cima, outras vezes em baixo, em frente, dos lados e não atino por onde posso entrar ou sair nem onde dentro ou fora ficar.
Em qualquer lugar que lance minha atenção dói-me; quando não é uma víscera, dói-me a recordação.
Tudo muito ao sabor da imaginação, por não haver janelas para olhar lá fora. Esforçando-me surgiriam e abrir-se-iam, mas não vale a pena ver o que vem de fora por uma janela hipotética. Tudo isso em tese e de olhos fechados, para não ver também o que tanto o mundo chora!
Nisto não sou como eles, os que choram, porque fechei os meus olhos ante a pobreza dos meus argumentos e também do mundo. Mas eu ainda choro os céus, por não querer chorar os homens que devem chorar a si mesmos, para que o mundo seja mais justo. Injusto e cruel é como ele é de olhos fechados: sem gestos, mas com cenas; sem arte, mas com artimanhas; sem cor, mas muito descorado e muito ruído, muita algazarra! Sem rosto, mas com dramas e com penas por muitas penas das aves andarem a despenar para fazer enfeites e cocares...
Talvez só nisto valha a pena em mim tanta insanidade! Insano sim tanto, que nem creio num inferno ou céu longe daqui distante deste pedaço de chão de onde de pé e de olhos fechados vejo o mundo lá fora...
São pobres, meus argumentos. Entretanto ricos são todos os encantos deste pedaço de chão ao qual a fúria de raivoso cidadão vai ceifando a verde cabeleira, já um tanto escurecida pelo fogo do desejo e pelo fogo monetário e outros fogos cães...
Quão pobre sou! Alimento minha alma desta sujidade e comer, com os quais até o divino alquimista há de sujeitar-se, para manter-me vivo?
Mas só enquanto viva esta vida pobre, para que de nenhum passado vá pesar-me no futuro e enfraquecer meus outros argumentos, que os quero outros...
Quando eu aqui voltar e certamente voltarei, não quero nada disto a pesar-me, porque é certo que já o terei carregado...
Embora pobres meus argumentos, andei por onde andei e não vi em rosa nenhuma alma se abrir... Exceto as grandes, algumas em poesia maior que a dos poetas e pensamentos nobres! E quanto isto me custa, admitir-me pequeno e sem caminho certo! Mas quem haverá de tê-lo? Quem as barreiras insanas vencera e exista além em algum lugar, e a algo que não há aqui?
Pobre de mim! Tão pobre que a ninguém nunca vi tanto assim! Mas resta-me ainda contemplar o belo, de algum modo à expressão do eu.
A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009
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