SAUDADE
Imensa e profunda saudade invade não sei bem se o meu pensamento ou minha emoção – não é preciso, esse sentir – sempre que as imagens de alguma cena reportam-me à infância e ao começo da juventude, ainda em minha terra natal; é-me impossível evitar que os olhos umedeçam e a alma lacrimeje internamente soluços noturnos, fruto de tudo que outrora passara por mim tão inocente!
Quisera muito, talvez o máximo possível de se querer retornar no tempo àqueles lugares, mas não há como voltar senão pelas lágrimas que nem sempre atingem a contento nem a tempo, tamanha é a distância e tal a brevidade, quase sempre se evaporando rapidamente antes de alcançarem o objetivo de minha melancolia; e porque as imagens fracionadas sejam também voláteis e breves, tornam-se memórias mortas. Porém absolutamente dolorosas e tão presentes, desgraçadamente difusas a tal ponto, que o mais que sei disto é um não saber nada. Mas um nada saudoso e real, no sentido do sentir; todavia reconhecido pela ação cognitiva que é quem ora lacrimoso ora melancólico, faz com que eu perceba a diferença.
Fosse instintivo certamente não saberia distingui-los, exatamente como os animais não fazem; mas não sou nesse aspecto, talvez só nesse aspecto animal, e então sei que sei e que sinto, sofrendo as sensações que um animal não sentiria.
Já saudade é um sentir ingênito da alma humana tanto quanto o dizê-lo é certamente um dizer genuinamente lusitano; e, como tal, digo-o agora com todas as substâncias das quais a saudade não pode furtar-se à existência, e tampouco eu faço qualquer esforço para evitar anunciá-la ao senti-la.
De modo que até as pedras mais duras e geladas de um inverno rigoroso ou os mais quentes de um inclemente verão de pés descalços, fazem-me sentir saudade; e até a fome do pós-guerra e todas as dificuldades de uma criança pobre numa aldeia portuguesa, de uma Europa arrasada, por ela geme minha alma ainda saudosa, lacrimeja minha vida acasernada dentro de meu ser incerto, e já não sabendo ser eu ou não, mas saudosamente sim sendo um ser todo-saudade; não talvez apenas e só um ser saudoso, senão que a própria saudade é que adotara o meu ser, para se fazer presente a existir eterna nele, e no caso ele sou eu.
Ao longe, quando olho fora sem olhar dentro, não me sinto tanto saudade; mas de repente vejo na penumbra de meu castelo antigo do qual totalmente ainda não tomei posse, sombras deveras arcaicas, mas como são as sombras de amigos que se foram ou de mulheres que eu pensei ter amado e de algum modo sim até amei, passam envolvidas numa névoa purpura, e até algumas me olhando a riem. E aí, nesse momento e já mais brando e calmo retorne lacrimosa a saudade, e eu recobro assim um pouco a consciência de mim mesmo.
De um nada ela nasce, quando é nada já tudo, mas ainda olhando fora através da janela de meu castelo vejo as escadas de um hotel modesto, aonde à tarde uma daquelas mulheres ia me encontrar e eu ansioso a esperava; e nem sei dela sequer o nome, nem reconheço o seu rosto difuso de incerta identidade. Foram afinal finais de semana e talvez até cama, porque noite e dia de quanto este tempo a mais e a todas elas eu pensei que amava. Mas não entendo por que seus rostos se apagam ou não se mostram nítidos, mesmo que sorriam, para mim?
Para acalentar a saudade daqueles distantes dias no bairro arcaico do centro comercial e misto de residências? Sem data ou tempo, embora em lances o clima ensolarado muito claramente quente, em pleno verão. Mas logo em seguida se faz inverno chuvoso e aconchegante, ensejando um olhar e depois um estar no seio de alguém.
Tudo é a um só tempo magnificamente trágico e belo, neste entardecer de uma vida a cismar a um canto da sala e à esquerda da alma. Que à direita o tédio é mais grave que a saudade em razão do cenário/solidão e da companhia tediosa das visitas indesejáveis cheirando a mau humor.
Só o amor vale a pena, mesmo quando não se ama; porque que se tivera a intenção de amar. Talvez a saudade por isso venha sempre acompanhada de um olhar incerto e feminino. Algum há de como eu lacrimejar, mas valeu a pena aquele olhar e até aquelas lágrimas sem as quais não haveria cenário; e, ainda que o houvesse não seriam as cenas nele animadas em atmosferas coloridas, com névoas e rostos passando, compondo-se com arte porque beba neles a arte suprema, se é que se pode neste momento chamar arte da saudade, se for nascida da arte suprema da alma.
Pena o meu coração bater e a seu ritmo limitar meu viver a este sentir concreto dos sentidos físicos, tão carnais! Cheiro e sinto o sabor das coisas agradáveis e desagradáveis, e ouço o tilintar de objetos caindo ao chão de quem cozinha. O cheiro a levantar com o fogo e transformando as matérias numa coisa que chamam comida, porque se coma, e bebida ao que se bebe porque tenha lá também o seu cheiro, embora no momento ausente dentro de uma hermética garrafa hipotética.
Concretas sensações indispensáveis ao estar aqui em presença física a recordar ontens, sem desejar muito mais amanhãs feitos com os hojes de tantas indesejáveis personagens diárias na mídia e que se dizem tão grandes, que até há os que se dizem governantes... Tantos vendedores de coisas que dizem obrar maravilhas! Que é melhor voltar ao simples de ontem que já não cheira e ninguém fala, nem tem sorrisos na televisão a fingir alegria, e já não se vê aí ninguém a mentir e a prometer, já não está aqui para que se o possa ver ao vivo, ou virtualmente na tela.
Quão belo é o recordar sem estar aqui mais nada! Talvez por isso até a fome da guerra, a geada, o calor de ontem saudosos sejam muito mais agradáveis que a presença de gente que nem sei se é gente apesar de parecer mais que gente, se essa gente é que vai por aí a gerar tédio, quando o tédio é morte ou sonho e ao belo? O tédio tem cheiro, tem cor, tem cara e sabor. Ainda bem que no meu castelo antigo só entrem imagens difusas, e por serem mentais, abstratas, louvo às minhas saudades como louvaria aos deuses se os houvesse encontrado no mesmo espaço dos ontens saudosos.
Saudade dos deuses, seria sem dúvida uma gratíssima saudade, como é a das mulheres que por mim passaram e hoje rostos virtuais sorriem; algumas até acenam, mas outras há que de meus olhos lágrimas abstratas descem entristecidas.
Tal como de mim descem ou sobem sentimentos ora de natureza tediosa do momento, ora de saudade do passado, mas sempre por elas...
Sou de algum modo um artista de mim mesmo, cujo quadro fundamental funde-se de elementos voláteis do passado com substâncias presentes, de todas as minhas desilusões; e ante o estar a observar a hoje com as essências de ontem profanadas pelos políticos, nem chorar vale a pena. Pouco importa se por isso a derramarem suas lágrimas de sangue vão aqueles que neles acreditaram, e aqueles que não; mas ao final, todos vão chorando. Melhor que por isso eu choro, pois choro de saudade com a sua gênese no passado; e não permite nenhum espaço ao presente tedioso com cheiro de promessas, nem na cor de falsas primaveras! Com sabor de um ranço amanhecido e profanado com mãos sujas de uns tantos promotores de ensaios, sejam eles de caráter bíblico, sejam eles de caráter de tecelões de temas da fome, sejam eles ensaiados ao vivo e em nome de ordem serial ou oculta?
E porque seja eu de fato eu um artista sem arte qualquer a bom termo exercer, embora exercendo de algum modo a arte de um poeta da saudade, a arte de um tocador de gaita, sem ser ao luar que a toco; a arte de quem fere a madeira com as ferramentas desafinadas, cujo fio lágrimas em fio vertidas no passado, as enferrujou. Ao final, já descontando as alegrias que de passagem encostaram à minha porta, mas não entraram completamente, restar-me-á apenas e tão somente, a minha bendita saudade.
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quarta-feira, 31 de dezembro de 2008
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