Os cínicos e os pessimistas dão excelentes escritores de ficção científica (será por isso que a melhor literatura sempre foi a anglo-saxónica e a europeia de leste?), e é fácil encontrar obras cujo tema é "muito bem, no séc. XXII somos todos pacifistas; eis senão quando, os terríveis guerreiros galácticos de XYZ fazem explodir Nova Chicago".
Lembrei-me disto - e deste blog - ao ver as notícias de hoje, e ao reler, há pouco, o artigo que o Clavis aqui deixou, isoladamente, no passado dia 1: "Sobre a Necessária Reforma do Sistema Financeiro Mundial". Cínico tento não ser, do pessimismo já me não livro: e venho aqui apropriar-me de Camões e dos seus "Lusíadas" já aqui falados, e lembrar que há um tempo para Vénus e um tempo para o irascível Marte. Só que - ai de nós! - Marte anda alistado no exército dos adversários. Bem vindos ao Mar d'Outubro - que ameaça ser o oceano encrespado de um Inverno maior.
Como era previsível para todos (menos para os governos?!) a reacção dos "mercados" à salvadora intervenção do Congresso Norte-Americano e aos seus setecentos mil milhões de dólares de dívida foi a ordem de atirar ao mar os salva-vidas (leia-se: vender). Em Lisboa a queda da bolsa foi a maior deste período (desde meados dos anos 90, isto é, desde o início da sua fase de maturidade), em Nova Iorque fala-se de colapso. Do Brasil à Austrália e de Moscovo a Hong Kong, a partir de hoje tudo pode acontecer. Até o melhor, para quem ache que o melhor seria continuar com o casino planetário que nos tem sido alegremente proposto e mais alegremente aceite.
Não quero, de tudo isso, fazer aqui mais um comentário pontual, que para tal há outros, e para todos os gostos, por esse mundo fora: aqui, penso que só vale a pena chamar a atenção para o que podem ser - ou não? - os limites da filosofia ou, para quem preferir, os limites da nossa invocação da "especificidade" ou da "vocação" lusófona. Que faremos nós com esta espada?
A euforia das bolsas, como o colapso das bolsas, são causa e consequência da "globalização" cega e surda que a meu ver é um passo para a dissolução dos mundos e a escravização do que resta dos homens: Queda dentro da Queda, já não a Queda na Matéria mas a Queda para o nada que há para "baixo" da Matéria, se posso usar e talvez abusar um pouco do pensamento de António Telmo. Se a crise se tornar incontrolável, quem estará de vigia para a atravessar? E guiado por que Estrela Polar, por qual Oriente?
Contra a Globalização que dissolve o Globo-Mundo, contra a devastação que ela induz, a Ética parece impotente; mas nela, ou melhor, no mundo-em crise tal como ela o vai configurando, a Ética aparece aos últimos acordados como o primeiro fundamento e mais funda esperança. Aqui há lugar para discutir se por isso nos alistamos no campo do Amor e de Vénus (mas o Eros dos Lusíadas não tinha uma aljava, e flechas, e a pontaria guerreira que lhe permitiu acertar em cheio no coração da Rainha das Ninfas?) ou se por isso devemos enfrentar o Caos revestidos da armadura medonha de Marte. Para discutir se Marte poderá mais uma vez ser seduzido, como o foi tanta vez, pela sua amante amorosa, e se podemos ser nós, por esta vez, a revestir-nos da pele diáfana e oferecida da Deusa. Há lugar para discutir muitas coisas, tantas que talvez haja mesmo lugar para agir também.
Entretanto, o tempo. Entretanto, a sensação de que pode ser tarde, e a sensação de que a revolta dos Titãs não é caminho de percorrer (ah, e isto daria para tanta conversa sobre os Lusíadas, também...). Entretanto, esta realidade estranha de não lutarmos agora contra guerreiros galácticos nem contra Troianos ou Gregos, Mouros ou Castelhanos, mas contra o Sistema Auto-Gerado, contra a máquina implacável dos Mundos, contra o Robot que dirige os robots todos. E que é, talvez, a verdadeira face dos deuses, ou a sua última ilusão.
No meio, uma "filosofia" que é arma da cegueira, a filosofia da Razão e do orgulho "europeu" moderno. A filosofia dos sistemas filosóficos, que são a guarda avançada dos Sistemas sem filosofia nenhuma. No meio, a filosofia que expulsou de si Deus, para melhor de si expulsar os homens.
À minha volta, os políticos comportam-se como sombras pânicas (no sentido próprio da palavra). À minha volta o povo (i-lusório ou não) já o não é, nem sequer no reino das aparências. Os Titãs amontoam montanha sobre montanha, serra sobre serra. Os mundos desmoronam-se em mundos. E a minha imaginação (que não é a minha fantasia) ainda sustenta o encoberto voo da águia. É a Hora; mas de Quem é a Hora?
Mar de Outubro, saberemos nós rasgar-te de novo? Saberás rasgar-nos este insuportável véu?
"Quem de vós, se um filho tiver fome, lhe dará uma pedra?"
17 comentários:
Caro Casimiro, saúdo o texto, pela forma e conteúdo, mas pergunto, perante o diagnóstico que faz, os limites que aponta e as perguntas que deixa, o que afinal propõe?
Tendo em conta o contexto da citação final, a resposta é óbvia: rezar!
(digo isto um pouco a sério e um pouco a brincar - oração e acção não se excluem e, para quem acredita, a oração é um suporte essencial da acção)
Cara Maria, diria mesmo que a oração - nas suas várias dimensões, desde a palavra exterior à interior e à absorção no silêncio contemplativo e unitivo - já é acção e a acção suprema, embora não exclua a sua manifestação em todas as demais formas de agir. Como sabem os contemplativos de todas as tradições, enquanto a acção exterior se esgota em resultados superficiais e efémeros, a energia de uma mente orante cresce e perpetua-se inesgotavelmente, sobretudo quando a intenção é o bem universal. Como rigorosos estudos científicos recentes mostram, a meditação e a oração também despertam e activam muitas das funções cerebrais que no comum dos homens, que se precipitam para a acção exterior e a luta pela vida, estão completamente mortas.
Tal como o Paulo, acredito que a oração nos transforma, e não ponho de parte a hipótese desse "despertar de funções cerebrais" com origem na meditação - mas acima de tudo acredito que a oração tem como principal consequência a actuação de Deus nas nossas (de todos e de cada um) vidas. O pedido confiante dos filhos desperta a dádiva generosa do Pai...
Maria, usando a sua linguagem, embora não seja a minha, diria que a oração nos torna permeáveis à "actuação de Deus", que vejo como contínua, pois não me parece que isso que designa como um Pai generoso dependa de lhe ser pedida alguma coisa para agir. Vejo assim a oração não como uma prece, um pedido, mas antes como uma crescente remoção da nossa consciência para nos unirmos a essa secreta fonte de uma contínua irradiação benigna para tudo quanto existe. O que, ao limite, dispensa as palavras e exige a suspensão das faculdades discursivas da mente.
Caro Paulo, em verdade não tenho nenhum programa concreto para propor.
Rezar não me parece desadequado, meio a sério meio a brincar como disse a Maria (mas não gosto da palavra - tenho que verificar de onde vem ela etimologicamente - prefiro a de "oração")... Em suma, a "acção suprema" é isso mesmo, suprema (qual seja ela, ou que modalidade tome, não cabe aqui).
Num plano "intermédio" (sem descer à acção "baixa" no seu sentido moderno, o que não quer dizer que ela não seja também pontualmente útil) realmente tendo a pensar que é importante e fundamental mesmo a re-ligação à terra (quase no sentido pagão e mesmo neo-pagão do termo): a redescoberta de uma sacralização das coisas, bem diferente da sua divinização, e de uma "verdade" nelas (talvez simples verdade de existência e não última verdade de essência, mas provavelmente exprimo-me em termos filosoficamente incorrectos): a verdade da coisa que está aqui, perante nós, aqui e agora, num instante de contemplação e de visão - e que, percebida como beleza, é entendida como manifestação de uma presença mesmo que muda ou ilegível.
Por isso as coisas, na sua diversidade; como "floração" do Ser, talvez. Mas uma diversidade enraizada, como a meu ver bem perceberam os que na Europa do primeiro capitalismo tentaram redescobrir (ou "acharam"...) aquele Outro-em-nós que foi o celtismo ou o "folk-lore"... e que não por acaso se não construiu como um Sistema a propor ou impor "de cima para baixo", a partir de uma ontologia ou de um poder, mas se construiu como uma viagem interna e um reconhecimento de novas terras...
Como na história do Graal, talvez seja o tempo de procurar interrogações, e não ainda de procurar respostas.
É nisto - não em "nacionalismos" bacocos, insolentes ou de exorcização de medos, e do medo fundamental do "outro" - que vejo lugar para as três coisas de que aqui tantas vezes tenho falado (e quantas vezes a contragosto), "pátria", "império" e "hierarquia": uma pátria semi-velada (como na Europa ocidental foi a pátria ou país celta), um império de tradução e de encontro, uma hierarquia de fraternidade. Tudo paradoxal à primeira vista, e por isso a meu ver tudo merecedor de cuidado e atenção: o paradoxo ilumina.
Para usar um simbolismo que o Paulo certamente reconhecerá, e melhor que eu, em tudo uma presença "polar" (do Norte ao "Sul Sidério"), para que a Viagem se faça depois horizontalmente, ou transversalmente, entre Ocidente e Oriente.
Tenho que interromper, e isto vai longuíssimo.
Cordiais saudações
Casimiro, desta vez acompanho-o, com pequeníssimas hesitações, em tudo o que diz. E saliento a prevalência do interrogar sobre o responder.
É caso para dizer " a minha alma está parva". Vou ficar em casa a orar, enquanto Deus vai trabalhar por mim.
Ó Ariana lusitana!
As ordens religiosas existem há 1500 anos, para não falar dos padres do deserto, ainda mais antigos - e só agora é que a sua alma fica parva?!
Ariana, há um tipo especialíssimo de oração que nos cristãos é bem simbolizado nas imagens (figuras) de São Jorge e São Miguel ... :)
Nada contra ela, também.
A minha alma fica parva pelo que leio por aqui, e aconselho que abandone o tom exclamativo, os meus ouvidos são saudáveis, se quer gritar faça-o em oração. As ordens religiosas remontam a cerca de 3000 anos a.c. (depois some a esse valor 2008 anos).
Casimiro, se entende por oração o erguer da espada ou da lança contra algo ou alguém que não seja a nossa própria ignorância e desamor, já não o acompanho de todo... Creio que as imagens de São Miguel e São Jorge necessitam de uma hermenêutica que veja no demónio e no dragão a obscuridade que reside no âmago da própria luz e que esta tem de trespassar para superar a luz e a treva e aceder à divina transcensão dos opostos.
Caro Paulo Borges
"não me parece que isso que designa como um Pai generoso dependa de lhe ser pedida alguma coisa para agir": tocou um aspecto que sempre me intrigou - e que sempre aceitei como 'mistério'. Por coincidência, li hoje esta citação, que desconhecia, de Santo Agostinho:
"Acreditais, irmãos, que Deus ignora o que vos é necessário? Aquele que conhece a nossa aflição conhece antecipadamente os nossos desejos. Por isso, quando ensinava o Pai Nosso, o Senhor recomendava aos discípulos que fossem sóbrios nas palavras: «Nas vossas orações, não sejais como os gentios, que usam de vãs repetições, porque pensam que, por muito falarem, serão atendidos. Não façais como eles, porque o vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós Lho pedirdes» (Mt 6,7-8). Se o vosso Pai sabe o que vos é preciso, para quê dizê-lo, mesmo por poucas palavras? [...] Se o sabes, Senhor, será mesmo necessário pedir-To em oração?
Ora quem nos diz: «não useis de vãs repetições» declara-nos noutro passo: «Pedi e recebereis» e, para que não pensemos que o diz com leveza, acrescenta: «Procurai e encontrareis» e, para que não pensemos que se trata apenas de uma simples maneira de falar, vede como termina: «Batei, e hão-de abrir-vos» (Mt 7,7). Ele quer portanto que, para que possas receber, comeces por pedir, para que possas encontrar te ponhas a procurar, para que possas entrar não deixes, enfim, de bater à porta [...] Porquê pedir em oração? Porquê procurar? Porquê bater? Porquê cansarmo-nos a pedir, a procurar, a bater, como se estivéssemos a instruir Aquele que tudo sabe já? E lemos inclusive, noutra passagem: «Disse-lhes uma parábola sobre a obrigação de orar sempre, sem desfalecer» (Lc 18,2). [...] Pois bem, para esclareceres este mistério, pede em oração, procura e bate à porta! Se Ele cobre com véus este mistério, é porque quer animar-te e levar-te a que procures e encontres tu próprio a explicação. Todos nós, todos, devemos encorajar-nos a orar."
ariana lusitana
deixo-lhe o monopólio da indignação...
Casimiro Ceivães
desculpe usar com tanto 'à vontade' esta 'sua casa' mas, pelo que tenho visto, as suas mensagens, e respectivas caixas de comentários, são irresistíveis!
Paulo, vamos lá a ver: enquanto "oração" ou "acção suprema", o gesto do Anjo ou do Santo não é imitável pelo primeiro espadachim que nos surja :) ...
(mantendo-nos dentro da visão cristã, o crucial - curiosa palavra neste contexto! - gesto de Cristo a mandar Pedro guardar a espada no momento mais decisivo da história do Mundo...)
Só que - os seus textos e comentários são sempre piores do que cerejas! - se atentarmos bem, nenhum deles, Jorge ou Miguel, faz "descer" a espada/lança. O que nós vemos é uma lança apontada ao coração, reprodução do Eixo do Mundo; e um dragão paralisado e impotente, reprodução do Caos ou do Mal (enfim, se entramos por aqui nunca mais saímos...) ou do tal "mundo rebelde" dos Lusíadas.
Nessa perspectiva sempre (a da "acção suprema") o que de facto eu penso é que a fidelidade (a palavra não é suficientemente precisa, mas não recordo outra) a esse eixo-ordenação é o essencial. Sob pena, a este nível, de desembocarmos em magia ou tentação titânica (o que não dirá nada a quase toda a gente hoje em dia, mas pensando bem também toda esta conversa não diz...)
A leitura cristã propriamente dita desde muito cedo não foi essa (no desenvolvimento do que veio a ser a "guerra santa" e a "guerra justa", que são conceitos diferentes) aliás acompanhando a tradição judaica, e o mesmo para a muçulmana... só para ficarmos pelas tradições que chegaram a atrair grande número de seguidores, e pelas "não-orientais", que são as que conheço melhor, ou menos mal pelo menos.
Dizer mais do que isto é para mim complicado aqui - em conentário ou em post - não apenas por começarmos a desviar demasiado do apelo do Renato Epifânio a que nos centremos no que nos pode unir, a um certo nível, mas também porque penso que precisaria de um texto longo e meditado. Tentando sumariar, diria o seguinte: mesmo quando me inclino para a não-violência (eu sou inconstante, como o Paulo já terá percebido...) os últimos a quem condenarei são o Zorro ou o Robin Hood, que se auto-legitimam ou não buscam legitimação senão no seu coração; a esses eu desde criança compreendo bem e estimo. Não gosto tanto de Governadores do México ou de Xerifes de Nottingham; esses são mais perigosos, mesmo que bem-intencionados. E são perigosos porque inevitavelmente arrastam consigo uma legitimação que não é a legitimação última. Esses, que se reclamam defensores do Dia, são os maiores aliados da Treva. E contra eles se ergue a Noite, que fala e age por si.
Mas isto é tão venenoso para ouvidos ensurdecidos como o foram os Evangelhos Apócrifos no juizo dos Padres Conciliares... :)
Maria, as casas fazem-se para os hóspedes :)
Fico contente por a apreciar. Obrigado.
Obrigada, Casimiro. A hospitalidade é uma nobre virtude!
Maria, não me deixe nada.
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