Cru. Um bocado cru este bife hoje. Os ovos também não estão muito do meu agrado. As gemas moles. Odeio gema mole. Laura, a garçonete, com o mesmo rosto inexpressivo de sempre (exceto por uma ou outra ruga, dessas que aparecem de um dia para o outro), serviu-me usando o mesmo avental de sempre. Há uma mancha amarelada na altura da cintura que venho notando há dias. Ela nunca troca o maldito avental. Peço que me sirva mais um pouco de suco. Está aguado, mas isso já não é nenhuma novidade. Os funcionários do comércio devorando seus pratos feitos, anedotas e gargalhadas para o telejornal. Hoje não vou comer as batatas; parecem mornas e tristes. Na verdade toda a comida já está um pouco fria agora. O bife cru. Cru, e agora frio. Algumas moscas sobrevoando o balcão. Mastigo com certo nojo uns grãos de arroz frios, embebidos no vinagre da salada. Feijão frio. Fico manipulando por alguns instantes um guardanapo de papel e peço a Laura que me arranje uma caneta. Ela costuma atender aos clientes sem falar uma só palavra, deixando-os, por um momento, sem saber se terão ou não seu pedido atendido ou mesmo se ela os ouviu. Ela me traz a caneta. Nem mesmo um olhar. Fico, como de costume, pensando no que escrever. Não pode ser nada óbvio ou trivial. Sem auto-piedade também; não suporto essas coisas. Precisa ser simples e bonito, só isso. Sempre fui bom com frases. Distraio-me rabiscando no guardanapo. O mesmo ponto de interrogação caricato de sempre. Acho que desenho isso desde os meus treze anos. Desisto de escrever. Sinto minha cabeça cansada quando me faltam as palavras. Pago a conta e saio. Preciso enfrentar as duas quadras que me separam de meu apartamento. Muito coloridas as ruas à uma da tarde. Procuro as chaves nos bolsos ainda na subida das escadas. Terceiro andar. Entro. Esquecera ligado o som. Deixo meu casaco sobre a guarda de uma cadeira e, como de hábito, dirijo-me ao meu quarto. Luzes acesas. Havia deixado também as luzes acesas. Sento-me na cama e abro a solitária gaveta do criado mudo, ao lado, retirando o trinta e oito que, como todos os dias, está lá. Verifico o tambor. Uma bala apenas, como sempre. Giro com força, fecho e coloco o cano, rotineiramente, dentro de minha boca. Presto atenção, por mais um possível último instante, nas coisas que me cercam. Os móveis levemente empoeirados, as paredes pálidas, o som, que se debate por todo o espaço disponível. Aperto o gatilho. Mais uma vez, não dispara. Coloco o revólver novamente na gaveta e fecho-a. Tenho compromissos à tarde.
[fabricio.fortes@hotmail.com]
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1 comentário:
Maravilha, Fabrício. Fantástico.
Parabéns.
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