Aviso de mobilização
Passaram pelo meu nome e eu era um número
- menos que a folha seca de um herbário.
Colheram-no com mãos de zelo e gelo;
escreveram-no, sem mágoa, num postal.
Convite a que morresse. .. mas por quê?
Convite a que matasse. .. mas por quem?
Ó vago amanuense, ó apressado
e súbito verdugo, que te ocultas
numa rubrica rápida, ilegível,
que dirás tu do meu e de outros nomes,
que dirás tu de mim e de outros mais,
no Dia do Juízo já tão próximo
- que dirás tu de nós, se nem tremeu,
na rápida rubrica, a tua mão?
Bem sei que a tua mão só executa;
mas para além do ombro a ti pertences.
Bem puderas chorar, ter hesitado. . .
- A mancha de uma lágrima bastara
para dar um sentido a esta morte
a que a tua indiferença nos convoca!
David Mourão Ferreira
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Há Dias
Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-se comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.
Eugénio de Andrade
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Acima de tudo,a ética.
Pensar a lusofonia como um arranjo do que há, politicamente falando,
enquadrando-o num tabuleiro geopolítico imaginado à medida de esquadrias
egolátricas, é pouco.
Há que colocar acima de tudo a ética, a construção duma convivialidade
límpida. O que pressupõe que cada um não se veja ao espelho nos outros e
não fique desencantado com o que vê. Há perfeição bastante em ser-se
imperfeito, esse o começo de tudo o que em nós vale a pena. O sermos nós
próprios, é claro. O “próprio” de nós, o sermos capazes da mais simples
cortesia, a de não nos tornarmos impróprios.
E por mim falo, e só de mim falo.
Há ética suficiente em sermos falantes duma Língua. Falantes, ou seja,
conviventes. Convivas, seria melhor. Mas a convivência é própria dos que se
sabem capazes de si, e merecedores de si próprios.
Capazes de assumirem a propriedade da sua ligação ao mundo.
Capazes, em suma, de serem habitantes dum espaço comum.
O grau zero da ética, será, pois, não cuspir para o chão,
não deitar papéis para o chão, não dizer palavrões em público,
saber comportar-se em cada local de acordo com as regras mínimas
de convivência, aliás fáceis de entender e, por isso, exigíveis a todos.
Depois há os comportamentos mais elaborados, aqueles que pressupõem
já um mínimo de racionalidade. São os comportamentos ligados à
cortesia, à polidez, à capacidade de sermos com os outros,
de nos sabermos conviventes num espaço comum.
Num grau superior temos os comportamentos em relação
a nós próprios e são esses que requerem mais atenção e
aquilo a que se chama a maturidade.
Caso contrário a egolatria não nos deixa aprender a dançar.
Não quer dizer que sejamos aquilo que pensamos, apenas e só
que não somos aquilo que pensamos.
E só de mim falo e para mim falo, com toda a propriedade.
Daqui para cima há mais estádios, mas ainda estou no início
da minha caminhada, lá chegarei.
Ora, sermos lusófonos é, antes de mais, aceitarmos que o nosso
ponto de vista, se bem que nos pareça cimeiro, e muitas vezes
chegámos até ele de forma laboriosa e depois duma difícil caminhada,
como apenas mais um ponto de vista. A lusofonia será um
desafio que, a ser assumido com propriedade, com a limpidez
toda de que formos capazes,nos levará muito longe no alargamento
daquilo que somos e pensamos.
E por mim falo. É uma aventura que vale a pena.
Experimento agir por não agir
com meus mestres chineses fascinado
tanto mais que me vejo consolado
de me ter obrigado a existir
mas bem sinto o dever de repetir
o dentro de mim mesmo revelado
aquilo que jamais teria ousado
alto dizer a quem o queira ouvir
que por aí me ligo e firme prendo
ao mais alto poder e enfim me alio
ao que talvez não seja embora sendo
ao que o mundo contempla não o vendo
ao que a mim me criou porque eu o crio
ao que à vida conduz não a vivendo.
Agostinho da Silva in "Uns poemas de Agostinho", Ulmeiro
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