Profissão: leitor
Privilégio é a palavra que melhor define
o exercício de desembrulhar as frases
uma a uma, letra a letra, constatando-lhes
o gosto, o peso, o conteúdo, o continente.
Adivinhar em cada uma os mil silêncios
lapidados, os gritos que jamais
serão escritos, os sorrisos navegantes
à espera do milagre que os amarre
no porto de algum peito marinheiro.
Despojar cada sentença da placenta que a recobre
e no fundo descobrir o esconderijo da esperança,
camuflado no ritmo sem compasso da verdade nua e crua,
oculto no alarido arrítmico do mutismo trepidante,
ausente na cerimônia fúnebre dos amores fracassados
e prima-dona no acontecer do encontro tão sonhado.
Depois de saciada a sede de metáforas
é chegada a hora de acariciar o eco das estrofes
degustando o significado vital de sua essência
cheirando a sonoridade mágica da mensagem
bebendo a consistência semântica dos dizeres
e agradecendo a vivência codificada que nos legam.
Decifrar e entender as entrelinhas
— sejam da vida ou do poema —
é prerrogativa de duendes encantados,
de gênios, de fadas, e também de feiticeiras;
nós outros, apenas o tentamos
e o tentamos e insistimos e tentamos
ainda que nem sempre o consigamos,
mas claro que nem por isso desistimos
pois ler poesia é ser poeta
e ser poeta é declarar de viva voz
para todos os ouvidos
e perante todas as audiências
que ler poesia, assim como escrevê-la,
é buscar palavras que sejam degraus
da mesma escada, e descobri-las;
é procurar agulhas nos palheiros, e encontrá-las;
é entender que ser pensante gratifica
e finalmente constatar que ser humano vale a pena.
Por tudo isso e outro tanto que ora fica no tinteiro
a resposta que merece pergunta tão freqüente
deve ser, sem titubeio, em voz alta e com orgulho:
profissão?... leitor! com muita honra!
Bruno Campel
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Vale a pena ser humano. Valerá a pena querer ser isso? Não vale a pena querê-lo porque todos os humanos o são. Mas há muitos seres humanos adiados. Que desesperam na espera.
A espera, se for aquilo que se guarda com mais fervor na palavra esperança, é a entrega ao inferno. E não há nada mais versátil e fecundo do que os círculos infernais. Cada homem pode encerrar-se dentro de um, emparedar-se no medo e no egotismo. E aí o fogo lento que não consome a carne quando devora a gordura mais gelatinosa de sermos nós a que geralmente chamamos alma, torna-nos a vida insuportável.
E emparedados na cela translúcida do impossível, exilamo-nos da vida, do palpitar que anima tudo e tudo une no amplexo de fogo que nos atinge, explosão irremissível, desde o âmago do que, por excesso de vocabulário, chamamos mundo.
Mas vemos e julgamos. Quase sempre julgamos que vemos. Raramente vemos o que julgamos ver.
O acto de julgar, se impedir que queiramos calar-nos de dentro, esfacela tudo. Tal como ao açougueiro é impossível remontar as peças que desmanchou, assim as mentes demasiado judiciosas ficam a braços com um massacre, quando desejariam apenas compreender. A poesia é o oposto disto. Deixa intacta a realeza que há nos seres e nos que deles se abeiram.
A realeza de não terem que ser o que a mente judiciosa procura para se aquietar. Insaciável, nunca encontra a quietude.
Por isso há mais, muito mais, nas palavras do que imaginamos. E a própria imaginação tem modos que transfiguram as palavras e o mundo, largado e alargado nelas e por elas.
Por isso as Línguas não têm fronteiras, embora a fala possa ter margens, entre as quais jorra o silêncio e a impermanência, o outro do tempo, essa fluidez da permanência. O tempo é o que não passa, a sua fluidez é a presentificação do esquecimento.
A eternidade é impermanente, o reflexo do que não se atém, não se agarra a um mesmo. E só o que é eterno é identitário, a fugacidade do amor, a tenacidade da dor, a vacuidade da saudade, a autenticidade da vida humana. Que, no fundo, não é autêntica ou inautêntica. Mas há que embarcar nela, daí poder falar-se dum viver na autenticidade, um viver embarcadiço.
Só assim estaremos bem firmados na vida, teremos um viver afirmativo, assente na aceitação do que há de próprio e sem a necessidade de negar o que em nós e nos outros é inegável, o facto quase absurdo, na sua verdade, de nós seremos nós e os outros serem outros, embora não sejam os outros de nós. O espírito negador, luciferino, nega-se afirmando-se. Ataca, desatacando-se. E ninguém consegue correr bem e ir longe sem apertar os atacadores. Os seus. Os dos outros devem ser-nos indiferentes. Até por vezes nos dá jeito que estejam desatacados.
1 comentário:
La Palisse, Pascal, Nossa Senhora dos Remédios e o velho padre catecista com pelos no nariz, que já não lembro o nome.
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