A Águia, órgão do Movimento da Renascença Portuguesa, foi uma das mais importantes revistas do início do século XX em Portugal. No século XXI, a Nova Águia, órgão do MIL: Movimento Internacional Lusófono, tem sido cada vez mais reconhecida como "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português". 
Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra). 
Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa). 
Contactos: novaaguia@gmail.com ; 967044286. 

Donde vimos, para onde vamos...

Donde vimos, para onde vamos...
Ângelo Alves, in "A Corrente Idealistico-gnóstica do pensamento português contemporâneo".

Manuel Ferreira Patrício, in "A Vida como Projecto. Na senda de Ortega e Gasset".

Onde temos ido: Mapiáguio (locais de lançamentos da NOVA ÁGUIA)

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quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Meu tempo é quando


Poética


De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.


A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.


Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem


Nasço amanhã
Ando onde há espaço
-Meu tempo é quando.

Vinícius de Moraes

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Exemplo



Há muito passado no estar aqui com o tempo,
Fim e reconhecimento, e não sofrendo nada mais do que o tempo concede,
Fim de novo e reconhecimento de novo
E tudo é crime, ou crime sempre, crime ou crime,
Criminosíssimamente crime,
Quando arriscamos a intensidade, comemorando.
Aumento e festa, ou cilício, e tempo de cair e tempo de seguir,
Tempo de mal cair e tempo de mal seguir,
Oh amamos tanto, amamos tanto estar aqui com o tempo
E sabendo que há nisso pouco passado.
Porque maiores que os desígnios da vida
São os desígnios da medida e, divididos
Em dois por eles, com eles indo, se por eles
Ganhamos o tempo, pedimos a forma mais fácil
De indagar que vamos morrer e, um dia, se
O tempo for deles e, a memória, de outros,
Havemos de ser úteis como mortos há muito,
Sem que a causa, o delírio, a designação,
O julgamento nossa medida abandonem,
Dividida em duas por elas, e ganhando constância.
Depois, depois faremos ou fará o tempo, por sua vez,
Aquele blasfemíssimo comentário,
E então consta que amámos.

João Vário
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Belo Belo

Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.

Manuel Bandeira
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O respirante aspira partes de si mesmo,
partículas do eu suspensas na atmosfera
que ele recolhe, uma a uma,
no seu ser composto

O ar é a última fronteira
a terra não cercada
o galope ainda não medido
a ilha não devastada pelos clãs
o oeste a oeste de seu alcance

No consumo diário
de si mesmo,
na cisão do eu e da fronteira,
a liberdade aspirada
vem de fora
à beira do eu que respira

Não há greve de ar
Como há greve de fome:
o respirante não tem
liberdade em estoque

Heron Moura
_________


Ontem pude conhecer os alunos da minha turma de Psicologia, com quem percorri o texto que aqui deixei como ilustração.

Foi uma aula poética. Fomos arrebatados por algo de excessivo, a própria Vida, que tem vida própria. Isso é o centro de cada aula, o contentamento descontente, a exuberância de estarmos aqui. Porque é aqui que a vida se vive, aqui, no centro do agora, na confluência do sempre com o que desconhecemos de nós.

E o que é o sermos vivos? Quem de nós, aqui, está a ser vivo?

E uma coisa que pedi aos alunos é que procurassem o que há de mais simples no estarem vivos, no estarmos vivos.
Nada mais simples do que respirar. Nós somos seres respirantes, como de forma muito feliz, felicíssima, nos recorda Heron Moura. E respiramos todos o mesmo ar: o ar que entra nos nossos pulmões já esteve dentro de todos os que estão na mesma sala (uma sala de aula é um espaço respirável, o espaço respirável por excelência) e a eles regressará num estranho, e rítmico, vai-e-vem, como o Espírito, essa respiração que nos respira, a que aspiramos e que nos inspira, que nos arrebata e nos projecta nos braços, nas vidas, uns dos outros. E não tem nome, nem terra natal, mas é o Natal na terra. Daí a felicidade dos encontros e do amor, sempre o amor. E a vida, essa elevação a partir da qual somos gente. E o que é que poderemos aspirar a sermos para além de gente? O que é que há a mais do que sermos gente?
Hoje vou percorrer com os meus alunos esta poesia de estarmos vivos:

O respirante é um ser precário: logo expirará. Antes disso, contudo, ele aspira. Ora, a poesia de Heron Moura vem percorrer precisamente o delgado arco que se retesa entre a aspiração e a expiração.
Primeira descoberta do poeta: não se trata, propriamente, de um arco, mas, talvez, de um círculo completo. O respirante, afinal, aspira restos de si mesmo - aquilo que de si expira: “o ar ácido aspirado e tocado [...] vem direto dos pulmões”. Assim, é preciso corrigir o enunciado que abre esta reflexão: a precariedade do respirante não diz respeito apenas à morte que em breve o colherá. Certo, “sua ração é escassa”, e a consistência do respirante, no fundo, não é maior do que a de uma “coluna de fumo” prestes a se dissipar. Mas o fato é que a expiração não pertence somente ao futuro; está, a rigor, desde sempre presente no próprio ato - o de aspirar - que sustenta a vida. Eis, então, de onde vem a precariedade do respirante: de habitar a consciência da morte.
Essa é sua casa - sua “máscara aérea”, da qual, não por acaso, “a máscara mortuária / é a última variante”. Essa é sua casa e sua máscara, sim, mas é, também, a única arma de que dispõe: “um escudo diante do rosto”, “[um]a armadura”. Uma estranha torção faz, pois, de sua fraqueza - a consciência da morte - a fonte de sua força: “Logo à frente de seu rosto, / ele sabe que está morto, / mas esse é seu alimento” (é “seu próprio adubo”, como Heron Moura dirá em outro verso do poema).
Ora, como isso é possível? Por que Heron Moura não entrega os pontos e diz, simplesmente, que a vida, saturada pela morte, é inviável? A resposta, ao que parece, está em que se inala algo mais do que se exala: “No consumo diário / de si mesmo, / na cisão do eu e da fronteira / a liberdade aspirada vem de fora / à beira do eu que respira”. É um quase nada - “o respirante não tem / liberdade em estoque” -, mas é o suficiente para fazer funcionar “A máquina de metáforas/ girândola ou geringonça [...] / que se contrai e se expande /no ritmo do respirante”.
Tudo se passa, então, como se a liberdade não pudesse ser aspirada senão como uma espécie de resíduo que só se alcança depois que as narinas experimentam “o odor [...] da carcaça apodrecendo”. Daí que se pode falar em transcendência, mas só sob a forma de “um voo cambaleante”. Cambaleante ou, se quiserem, disforme: “O sublime não tem forma”, visto que sua única figura possível é, desde sempre, transfigurada pela experiência da morte.
Como se nos presentear com essas perturbadoras descobertas fosse pouco, Heron Moura conclui o seu poema com uma síntese admirável de seus versos (e, quem sabe, da própria poesia como forma de expressão - inspiração? expiração? - humana). Nessa estrofe derradeira, a distinção entre aspiração e expiração desaparece para dar lugar a uma outra dicotomia - a do fluxo e da contracorrente, quer dizer, a da vida e da morte. E do encontro dessas duas forças - no ponto em que se situa a nau frágil do respirante -, emerge, com sorte, algo que quase não se sustenta, pois é “ruína, não arquitetura”. Mas é tudo que o respirante tem; é tudo o que pode ter - e é por isso, uma coisa que não pode senão amar. Essa coisa - ou, antes, essa quase-coisa, esse espectro - é “[uma] plenitude sem forma”, volátil e evanescente como o ar que se respira. “O náufrago respirante / Na plenitude sem forma /Respira no fluxo e na contracorrente”. http://www.heronmoura.com/blog/?p=8

Ora, sermos gente é sermos agentes do sonho.
E quero fazer com estes meus alunos uma actividade que me foi sugerida pelo meu amigo Hugo, esse bom gigante que entrou na minha vida e me fez ver a dignidade que há em querer ser professor contra tudo e contra todos. E em querer ser homem. O que poderemos mais do que querermos ser homens, querermos ser vivos? O Hugo, o professor mais competente que conheci até hoje, dez anos mais novo do que eu, neste momento ainda aguarda colocação. Mas há meses que está a preparar o novo ano lectivo. Um exemplo.
Essa actividade é assim:
Leva-se um cesto para a aula. Dá-se um papel a cada aluno. Nesse papel os alunos escrevem o sonho que mais gostariam de ver realizado. Os papéis são dobrados e colocados no cesto. Depois cada um tira um papel e recebe a missão de, ao longo do ano, ajudar a que aquele sonho seja realizado.
Por vezes é difícil, porque a maior parte dos sonhos mais decisivos parecem impossíveis de realizar. Mas há surpresas. Por vezes os milagres acontecem. Basta que procuremos o irrealizável. Talvez descubramos que já “lá” estamos. Quem sabe?
Talvez sejamos um sonho que se sonha, um sonho que se espraia por um quotidiano aparentemente sombrio e cinzento. Talvez.
E talvez estejamos a tempo. Talvez estejamos sempre a tempo.
Estamos sempre a tempo quando somos vivos.

1 comentário:

Clarissa disse...

Custar-lhe-ia muito poupar-nos, colaboradores deste blogue, às suas aulas aos meninos e meninas? Somos crescidos já e alguns de nós também são educadores. Temos uma visão crítica, eu tenho, e dispenso-me de mais comentários.