O fim. O inicio.
Acabou o meu verão. Acabaram as férias (de infância). Não por este ano mas para o resto desta vida. Fui há duas semanas a casa da minha avó. Chorei ao abrir a porta da despensa. E comparar o que vi com a imagem que tenho no meu computador. Os tachos continuavam reluzentes, mas faltava vida a tudo. Sentia-se uma aridez, um frio tremendo. Como se com a morte dela tudo aquilo em que ela tocava normalmente se tivesse resignado, deixado estagnar. A embaciar de dor.
Nada diz mais que uma pessoa morreu do que abrir, escancarar os móveis que dantes se abriam, devagarinho, sem fazer barulho e para onde se espreitava com a curiosidade ingénua das crianças. Separar posses. Distribui-las por sacos plásticos. Virar gavetas do avesso. Desmembrar guarda-fatos...
Sempre senti aquela casa como se fosse parte de mim. Conheço-a de cor. Cada rebordo, cada canto, cada esquina.
Lembro-me daquelas noites quentes de Verão (sim, quando era criança o verão ainda era quente) em que o vento sapateava pela rua do Pedaço acima e se lembrava de entrar pelos postigos da sala. Fazia rodopiar as cortinas que lançavam sombras longas pela casa. Irremediavelmente levantava-me, ia espreitar o silêncio da rua, sorver o calor do vento. E fingia ser tudo entre sala e quarto. Princesa, heroína, meretriz, mártir, feliz, infeliz.
Acordar de manhã com os barulhos do Pedaço. A mota do vizinho. A padeira. Os pregões da peixeira. O barulho da cafeiteira para aquecer o leite a pousar nos bicos do fogão. Aquele fogão pequeno entre o borralho gigante e a chaminé imensa. O cheiro da pomada e spray para os ossos. Aquele cheiro de limpeza absoluta e carinhosa que se lançava de cada superficie. As vizinhas a abrirem o portão, a passarem pelo pátio e a entrarem: "Precisas disto? Vou ali ao mercado e..". "E a menina?" "A menina está a dormir."
E a menina já tinha acordado. E voltado a adormecer. E escutava deliciada as conversas da rua.
Sempre me fascinou a vida assim. Toda a gente nos conhecer. Ver-nos crescer. Alternar entre beijinho na bochecha e festinhas no cabelo. A amizade. O companheirismo. Se uma vizinha estava doente, as outras faziam fila à porta dela para se oferecerem para toda e qualquer tarefa. Sempre me fascinou a troca de pratos de arroz doce em dias assinalados. A broa de abóbora.
As tuas amigas, colegas de carteira e de porta fazem parte do meu imaginário de infância também. A senhora Maria Pinta e a sua casa sempre branca com debruns verde forte. A Rosa Rebola e os suspiros, sequilhos e fusis. A Gilda, com o rádio eternamente ligado. A senhora Leonilde e o senhor Joaquim, que sempre me pareceram, desde pequena, um casal de gnomos bondosos. E tantos, tantos outros.
Lembras-te daquele senhor capitão baixinho, que andava sempre de boina e tinha uns olhos mais azuis do que quaisquer que vi até agora? Como ele fingia que me vinha fazer cócegas quando eu estava ao portão para eu correr para dentro a gritar e a rir ao mesmo tempo? Não me recorda o nome dele...como era, vó?
Nunca soubeste que eu tinha um fraquinho pelo Nélson. Esse da casa em frente. Que o ouvia virar para a rua, à noite, à distância, e me ia pespegar ao postigo para não perder um instante. O barulho da chave na porta. O ranger da porta no soalho. O arrastar. clac clac. A luz do quarto que se filtrava pela persiana permanentemente (mal) fechada. Esperava mais 5 minutos até a calma regressar. Às vezes sentava-me ainda por breves momentos, a apreciar o silêncio. Só quebrado pelo relógio da cozinha (que se ouvia em toda a casa) que agora marca incessantemente as horas aqui ao meu lado.
Lembro-me dos cheiros todos. Do refogado que atravessava o pátio e vinha ao meu encontro mal abria o portão vinda de qualquer recado. Da sopa de feijão inchado. Do arroz doce. Da pá do leite creme a queimar o açúcar e a canela. Do Omo que gostavas de usar para lavar a louça, até a minha mãe te convencer do virtuosismo do SuperPop Limão. Do louro pendurado no fio do pátio. Do café levezinho da tarde. Dos cachorros que fazias com pão, manteiga quente e salsicha.
Cheirava tudo...cheirava tudo a amor. A emoção.
Já te disse que tudo ganhava vida nas tuas mãos? Não só as panelas que tanto areavas. Tudo. A renda. A roupa presa a secar. Tudo...Até as andorinhas voltavam todos os anos para o teu pátio não para te chatearem, mas porque gostavam de ti. Nunca te disse esta, pois não avó?
Senti, naquela tarde de segunda-feira, que se me acabava o verão. Não há mais rádio da Gilda, o Nélson (casado e com filhos) há anos que já não mora ali, longe vão os suspiros e cada vez mais raros são os pratos de arroz doce. As faixas verdes da casa da senhora Maria desbotaram. Está para venda. O senhor capitão....ainda eu era pequena e ele já tinha morrido. Não morrem os olhos azuis na minha memória.
Já não há histórias de antigamente. Já não ouço as anedotas do teu café. Quem é que tinhas atado ao pé da mesa ao certo? :) Já não ouço as vizinhas a perguntarem se precisas de algo nem o toque da padeira. Já não vou aparar o pão há séculos. A minha mãe tem alguns dos sacos de pão lá em casa. Aqui soa o relógio, vela a tua mantinha e estendem-se as passadeiras.
O meu verão morreu. Já te tinha dito? Não importa que não o passasse aí em casa nos últimos anos. Não interessa que, ultimamente, nem tu lá estivesses. O meu verão, a minha infância, era, e sempre foi, aquela casa, os sons, os cheiros, os sabores, e tu.
Morreste avó...mas juro que te vi sorrir na foto em que preguei os olhos a caminho do cemitério. Eu e as minhas primas com as chaves na mão. Não queria ir, sabes...
Quando me despedi de ti apertei-te a mão e ela estava quentinha e macia. Como sempre. Desde que sou gente lembro-me sempre de ti assim, vó.
Nunca te cheguei a dizer que te amava pois não? Nunca o ouviste? Mas sabia-lo.
Nem acredito que o meu verão acabou (assim)...
Brida, http://www.maosvazias.blogspot.com/
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Chega um momento da nossa vida em que o Verão tem que ser segregado de dentro do nosso coração. É um testemunho que nos é passado por quem teve a Graça de nos instaurar como os destinatários do Verão.
Não será por acaso que o nosso ascendente, quase sempre, é o signo solar de um dos nossos avós. O acaso é um dos sortilégios do Verão.
E faz parte do assumirmos a nossa herança solar vivermos a partida de quem na nossa vida se repartiu, se deu a comer e a beber, nessa eucaristia dos afectos e das presenças, nessa entrega totalmente grácil.
E não encontro palavras para te dizer o quanto partilho da tua dor. Prefiro dizer-te do Amor e de como nunca o perdemos, de como ele nos eleva e nos torna aráveis e fecundos. Aí assoma sempre o futuro, levedado, alvo, irrevogável e sempre resguardado dos nossos medos.
Temos, pois, que deixar partir quem parte em direcção à fonte suprema do tempo, lá onde as águas são sempre puras e as almas assumem a verdade da memória e do esquecimento. Deixar partir quem já não é nosso porque nos deixou tudo. E é com esse infinito que temos que alimentar os que nos chegam. Também nós partiremos e só levaremos o que não é nosso, o Amor, essa chama que nos aproxima, por vezes sem sabermos porquê, de seres com uma vibração igual.
E vale a pena vivermos a entrega plena ao Amor. Mesmo quando a dor nos parece insuportável. Mesmo quando ficamos rasgados por dentro e deixamos de nos saber. É preferível isso do que acreditarmos na morte ou no medo, ou na vida sem errância e sem entrega.
E assim, também, nos desfazemos e nos podemos tornar incompreendidos. Mas essa incompreensão prepara-nos para o Verão. É ela que faz regressar as aves do eterno que navegam os ares na demanda do Sul.
E, então, o Amor ilumina-nos por dentro, de dentro, bem de fora de nós e do tempo em que não nos sonhamos. Essa a nossa grandeza. Por isso há encontros que iluminam a nossa vida, mesmo que nos sintamos obscurecidos pela intensidade da luz que nos chama para um novo Verão. É esse que nos consumirá e nos conduzirá à saudade dos que ficarão.
Partir não é, então, uma traição, nem ao Amor, nem a nós, nem à vida. É uma precisão que nunca entenderemos. Porque agora não somos isto que, camada, sobre camada, encapsula o Vivo Amor de que somos a expressão, essa luz claríssima que nenhuma gramática enclausura, que nenhum desejo dissipa, que nenhum discurso alcança. Por isso, em verdade, nunca partimos, repartimo-nos mas não nos partimos. E não há distância se aprendermos a recolher-nos no Amor.
Por isso Agostinho da Silva tem razão quando diz que amar é fazermo-nos ao mar. E fazermo-nos ao mar é tornarmo-nos embarcadiços. E isso é sonharmos com a Ilha, mesmo que não saibamos como aportar nela. É que os encontros decisivos não podem ser forçados e o maior dom que podemos conceder aos que amamos é a soltura. Só isso os poderá resgatar do medo e da morte. Mas devemos viver isto sem desistência. Sempre sem desistência.
Como a brisa da manhã, logo extinta mal damos conta dela, assim também o hálito dos que nos afagam se extingue, marca da suprema entrega, sinal do que em nós nos sagra mais do que a vida.
Que o Amor se cumpra então, hoje e sempre, nas nossas vidas, marcadas pela brevidade e pela festa de nos sabermos unidos por um mesmo fogo, inextinguível, total, absoluto e absolutivo.
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